A maioria das filarmónicas surgiu com o objectivo de, por um lado, oferecer a instrução e o ensino da arte musical às populações, carentes nesse sentido, e por outro, de servir a celebração da sua fé.
Daí que, muitas delas, na sua designação, se apresentem como “sociedades artísticas e culturais”, com nomes de oragos locais. São Cristóvão, na Caranguejeira, Nossa Senhora da Piedade, em Monte Redondo ou o Senhor dos Aflitos, no Soutocico são exemplo do timbre religioso destas instituições. Esta génese marcadamente cultural, recreativa, formativa e religiosa sobreviveu até à actualidade, mas será que este valor meritório lhes é reconhecido?
O “conservatório do povo” que vive no coreto
Para o musicólogo Paulo Lameiro, “a banda filarmónica surge num triângulo entre a necessidade da Igreja ter música para as suas celebrações, a necessidade de alguns políticos em terem alguém que os promovesse e da própria tradição de serviço público, através da música em grupo”. Esta herança eclesial potenciou os próprios reportórios litúrgicos das filarmónicas. Foram elas que permitiram, em certa medida, que as festas religiosas existissem, uma vez que os decretos episcopais obrigavam a que existisse uma Missa solene cantada, lembra o musicólogo.
Do artigo sobre filarmónicas que Paulo Lameiro demorou dois anos a redigir para a Enciclopédia de Música Portuguesa do século XX, pedimos que nos apresentasse uma definição sucinta destas instituições: “um conjunto de músicos, de sopro e percussão na sua maioria, que desempenham funções, ao ar livre maioritariamente, com uma relação com a comunidade.”
Para o padre António Cartageno, reconhecido autor de composições litúrgicas e membro do Serviço Nacional de Música Sacra, as bandas filarmónicas dão um “valioso contributo para a cultura e a religiosidade popular, manifestada nas nossas tradicionais procissões”. Através das chamadas “marchas graves”, composições de passo cadenciado e lento, de carácter meditativo e contemplativo ou mesmo de um repertório de cânticos eucarísticos, que podem ser cantados, o sacerdote considera que as procissões acompanhadas de banda filarmónica “são porventura ainda mais solenes, porque favorecidas pelo ambiente quase místico criado pelo som dos instrumentos, convidando ao recolhimento e à oração”.
“A instituição portuguesa de maior relevância”
A vida profissional de Paulo Lameiro enquanto musicólogo, maestro e professor teve início na filarmónica dos Pousos e demonstra a importância das filarmónicas na formação cultural e social. Quando falamos desta influência, o maestro não hesita classificar as filarmónicas como “a instituição portuguesa de maior relevância para a educação musical, social e cultural de toda a população”.
A realidade parece comprovar a relevância destas instituições de cariz popular na sociedade portuguesa, sobretudo se tomarmos em linha de conta que existem uma centena de escolas de música, oficiais e privadas, e pelo menos, oitocentas filarmónicas.
A contribuir para esta profunda participação, estão o encontro intergeracional, profissional e social, “ao mesmo nível e sem descrição hierárquica etária”, que estes espaços promovem e que fazem da filarmónica um “pequeno, mas complexo” sistema social, observa Paulo Lameiro. “Não estamos apenas a falar de uma escola de música, de um conservatório, ou de uma escola de valores, mas de algo bastante mais poderoso e intrincado nas nossas vidas.”
Da particularidade de não tocarem em espaços fechados, deriva uma outra mais valia da filarmónica, que oferece aos seus elementos a oportunidade de conhecerem as sua identidade através das pessoas e das gentes da sua região.
“As filarmónicas são um misto de realidade profana e religiosa. É a banda filarmónica, com a sua música, que liga o universo mais sagrado de uma manifestação pública de fé, com o universo mais profano, que é todo o exterior em que os andores misturam santos, dinheiro, coelhos assados e azeite, que são religados, eles próprios, pela música da filarmónica.”
Dizer que grande parte dos músicos profissionais do nosso país iniciaram a sua formação em bandas filarmónicas já é significativo, mas não traduz toda a importância destas instituições, conclui.
Um encontro de gerações
Fernando Menino é o presidente da Sociedade Filarmónica São Cristóvão da Caranguejeira. Os dois filhos tocam na banda e foram uma das razões que o levaram a assumir o cargo, há dois anos atrás. Actualmente, preside também à Associação de Filarmónicas do Concelho de Leiria (AFCL).
A Filarmónica da Caranguejeira, que preside, tem 69 anos de existência e 71 membros ativos, com idades entre os 8 e os 67 anos e uma média de 20 anos. O aumento de inscritos registado nos últimos dez anos deve-se, no entender do presidente, à existência de uma escola de música, à centralidade da sede na Caranguejeira, mesmo ao lado da escola do primeiro ciclo e à forte tradição musical que existe na comunidade. Na banda, existe um caso de uma família que está presente com três gerações: avô, filho e netos, conta.
Em relação a este aumento do interesse dos jovens pelas filarmónicas, Paulo Lameiro lembra o “grande crescendo” destas instituições registado no nosso país, especialmente no pós 25 de Abril de 1974, numa altura em que se contavam sobretudo de formações masculinas, de meia idade para cima. Hoje, a grande maioria são jovens, rapazes e raparigas, que ali encontram “um espaço de enriquecimento pessoal, profissional e social extraordinariamente importante”, refere.
De onde vem o dinheiro
As atuações das filarmónicas são sobretudo nas festas religiosas, nas paróquias e nas proximidades, onde participam nas arruadas, na recolha de andores, nas Missas da festa, procissões e concertos durante a tarde.
Estas participações são cobradas tendo por base uma tabela indicativa, aprovada pela AFCL e que serve de base para as deslocações e atuações. Os montantes oscilam entre os 1050 euros e os 1450, conforme a época e número de horas da atuação. Ainda do lado dos proveitos, está o subsídio anual que o município atribui às filarmónicas do concelho, através de um protocolo que prevê pelo menos dois eventos, informa Fernando Vieira, presidente da Sociedade Filarmónica Senhor dos Aflitos de Soutocico.
Para concretizar os valores que entram na contabilidade de uma filarmónica, aquele responsável dá o exemplo da instituição a que preside. “Do orçamento de cerca de 30 mil euros anuais, o dinheiro que se consegue das atuações não chega a pagar um terço desse valor”. O restante é garantido através do apoio do município, de peditórios, atividades, festas convívios, almoços, jantares, em que os valores revertem para colmatar as necessidades financeiras, informa Fernando Vieira.
Regatear o preço
No contacto que tem com algumas comissões de festa, Fernando Vieira conta que, muitas vezes, o valor pedido é considerado “uma exorbitância”. O responsável nota uma aposta crescente no valor gasto no fogo de artifício e nas bandas que animam os arraiais, em detrimento das filarmónicas, “que transmitem uma componente festiva e solene importante às celebrações litúrgicas”. Esta cultura faz com que as filarmónicas sejam, tendencialmente, menos contratadas e apoiadas, sustenta Fernando Vieira.
A contribuir para este ambiente, está, na opinião de Fernando Vieira, a constituição das próprias comissões de festas, que “pode ser composta por elementos com uma leitura da realidade mais virada para as atividades lúdicas e profanas, que não visam uma presença da filarmónica”.
O presidente da AFCL, Fernando Menino, identifica duas realidades na relação com as paróquias. “Existem as bandas que são acarinhadas pela comunidade e que são requisitadas pelas comissões de festas, sem que haja um regatear do preço. Noutra realidade, existem as comissões de festas que pensam muito ao nível dos números e esquecem a qualidade, acabando por contratar outros serviços que não se adequam às celebrações.”
“As bandinhas, as charangas e as fanfarras são cada vez mais contratadas para atuar nas festas religiosas, porque cobram cerca de um terço do valor requerido pelas filarmónicas, embora sem um repertório adequado ao serviço religioso”, refere o responsável da AFCL.
Paulo Lameiro fala de uma diminuição das atuações nas festas religiosas, que era o principal “mercado de trabalho” das filarmónicas. “Quando eu entrei para a banda fazíamos cerca de 30 festas religiosas num ano, hoje, dificilmente fazem mais que oito festas”. Para esta realidade contribuem, na opinião do musicólogo, a diminuição do número de festas religiosas e a substituição da banda filarmónica por outras formações. Defende, por isso, “uma maior consciência dos párocos e das comissões de festa do que é a banda filarmónica e a mais valia que ela representa para o enriquecimento cultural da comunidade”.
“A maior parte dos párocos e dos responsáveis da Igreja não acredita que o crescimento cultural das pessoas e a sua educação estética as aproxima da espiritualidade, de Deus. A comunidade paroquial e a Igreja, no seu todo, nem sempre considera esse lado da festa religiosa ou da celebração e desconsideram, por desconhecimento, muitas das valências que podem enriquecer essa dimensão cultural, em favor de outras dimensões mais populares.”
Um caminho
Para estreitar esta relação, a Diocese tem promovido, nos últimos anos, encontros entre os responsáveis das filarmónicas onde se faz o balanço anual e se debatem problemas que vão surgindo.
O presidente da AFCL considera essencial a presença, nestas reuniões, dos párocos e representantes das comissões de festas, “o que não tem acontecido”.
Já o presidente da Filarmónica do Soutocico, Fernando Vieira, considera que estas reuniões são “importantes para que haja uma relação mais profícua entre as partes”, onde já teve oportunidade de defender uma maior valorização das filarmónicas por parte dos párocos e das comissões de festas. “O pároco, enquanto responsável último pela comissão de festas, deveria ter uma participação mais ativa neste sentido.”
O padre Sérgio Henriques, diretor do Departamento Diocesano de Liturgia, reconhece que, na organização das festas religiosas, a despesa com as filarmónicas é, em alguns casos, analisada em último plano por uma questão económica. Em relação à aposta nos elementos profanos de uma festa, em detrimento da contratação de uma filarmónica, o sacerdote refere que se trata de uma conceção errada e defende uma valorização da participação das filarmónicas, que dão um outro “brilho” às festas e às celebrações. No centro do problema estão as comissões de festas, refere, que “os párocos devem ajudar a reconhecer a importância de uma banda filarmónica como elemento que ajuda ao prolongamento da celebração”.
Um valor que custa dinheiro
Fardas, aquisição e manutenção de instrumentos, material perecível (palhetas dos instrumentos de madeira e lubrificantes), pagamento de maestro e despesas correntes com água e luz, são os gastos da filarmónica da Caranguejeira. “O valor patrimonial, ao nível dos instrumentos, ronda os 40 mil euros, sem contar com as fardas”, refere o presidente, Fernando Menino. A atenuar esta enorme despesa está o facto de as fardas passarem dos mais velhos para os mais novos e de alguns instrumentos serem adquiridos por conta dos próprios pelos músicos, indica o responsável.
Quanto custa?
Um chapéu da farda de uma filarmónica: € 50,00
Uma farda completa: € 300,00
Uma palheta: € 2,50/unidade
Um clarinete baixo: € 4.000,00 (variam entre € 800,00 e € 8.000,00)