Um Deus ausente que inquieta e provoca

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Acabei de ler o interessante livro “Um Deus ausente que inquieta e provoca” do sacerdote argentino Enrique Cambón, na sua edição italiana*. O autor procura responder à pergunta que serve de subtítulo: “Porquê cada vez mais pessoas não conseguem crer em Deus mesmo quando o desejam?”. A obra, escrita numa perspetiva dialógica e inclusiva, quer ir ao encontro dos crentes e igualmente dos não crentes e sobretudo dos que, crendo ou não, buscam a Deus.

O livro abre com duas citações que bem podem considerar-se a sua chave de leitura. A ativista, mística e filósofa francesa Simone Weil (1909-1943) escreve: “Deus pode estar presente na criação somente na forma de ausente. A essência de Deus é o mais maravilhoso testemunho do amor de Deus”. Por seu lado, o teólogo e cardeal Walter Kasper afirma: “O Deus Uno e Trino é a resposta cristã, a única sustentável, aos desafios do ateísmo contemporâneo”. A seguir, outra citação revela a situação existencial de muitas pessoas da atualidade em relação a Deus. É do poeta italiano Mário Luzi, num texto da via-sacra no Coliseu de Roma, em 1999, onde escreve: “Como está só o homem… Tu estás em todo o lado, mas em lado nenhum te encontra”. Com este ponto de partida, o autor revela a sua intenção: “assinalar com clareza a noite de Deus que cresce na humanidade, na qual, porém, é possível entrever o início de uma nova madrugada para o pensamento e para a existência humana”.

O itinerário do livro começa com a análise do fenómeno crescente daqueles que afirmam “não poder” crer em Deus devido a várias dificuldades relacionadas quer com a sua ausência e as imagens com que é apresentado quer pelas questões relativas à sua relação com o homem e a liberdade deste. Continua, no capítulo 2, com as “respostas significativas da teologia atual”, reconhecendo esta que a humanidade chegou a um estado adulto, que a criação tem a sua própria autonomia e que a relação com Deus tem certa analogia com as relações interpessoais. O capítulo seguinte aborta a realidade de Deus como amor que “cria unidade na distinção”, que faz silêncio e que se distancia para que o outro tenha o seu próprio espaço. Segue-se a explicitação da realidade unitrinitária de Deus que “torna possível a fé”: Deus é relação de amor e comunhão em si mesmo e com a humanidade. O último capítulo responde à pergunta se uma perspetiva “mais trinitária” da relação com Deus “pode mudar alguma coisa na nossa visão e na nossa vivência”, defendendo a convicção de que “crer implica ser capaz de novas perguntas” e de que a fé e a inteligência se abraçarão numa relação de amor recíproco com Deus e nas relações humanas vividas em Deus de maneira trinitária, em fraternidade e comunhão recíprocas. O percurso conclui-se com a afirmação de que o testemunho de relações humanas ao modo trinitário “tornam credível Deus”, permitem que ele se manifeste na comunidade, sem prejuízo do respeito pelo mistério de Deus e a liberdade humana.

A obra completa-se ainda com cinco apêndices que servem de documentação e explicitação de vários assuntos relativos à problemática central nela abordada: 1. O amor, se não encontra a justa distância, destrói; 2. Sobre as múltiplas estradas possíveis para encontrar Deus; 3. Nota sobre os condicionamentos sociológicos da fé; 4. Contradições do Novo Testamento, causa do ateísmo?; 5. Sobre a importância de adquirir uma mentalidade e uma perspetiva históricas.

Para o autor, fazendo-se eco de um outro, o “silêncio” e a “ausência” de Deus no nosso mundo são a maior dificuldade para a fé (A. Vergote). De facto, Deus não é evidente nem facilmente audível e muito do que se diz ou se mostra sobre ele são imagens que o obscurecem ou até deformam. Podem, por isso, compreender-se as dificuldade e objeções de quem não crê e as dúvidas de quem crê mas procura compreender sempre mais os dados da fé. Daí a importância do diálogo aberto e sincero entre crentes e não crentes: aqueles podem fazer perguntas que também estes têm dentro de si e juntos podem progredir na busca de respostas e de entendimento úteis a uns e a outros na compreensão da própria humanidade. O diálogo e o caminho juntos constituem uma experiência que enriquece a ambos.

“Nem a fé nem o ateísmo se podem provar: requerem uma decisão”. De facto, para conhecer Deus e decidir-se por Ele são precisos a perceção dos sinais com que se manifesta, o testemunho de crentes e a intuição e experiência pessoais. Nem o crente nem o descrente “podem a firmar as suas posições com total certeza”, pelo que um e outro precisam de fazer caminho na sua busca e podem partilhar as suas inquietações, experiências e descobertas, com humildade e abertura recíprocas. O mistério da vida, do universo, da pessoa humana e do próprio Deus toca, envolve e provoca ambos com os seus sinais e o silêncio, a sua luz e as trevas, as interrogações e os desafios.

Segundo o autor, a revelação cristã de Deus como Amor permite-nos perceber o seu silêncio e ausência como respeito pela sua criação e pela liberdade humana. É pelo seu amor que Deus se relaciona com a sua criação, respeitando a sua distinção, autonomia e as leis próprias com que dotou a sua existência. A relação de Deus Amor com a humanidade e o seu agir é igualmente de amor, chamando cada ser humano “não apenas à liberdade, mas também à criatividade do amor”. Por isso, Ele abre “imensas possibilidades motivacionais às melhores capacidades humanas”. O amor enraizado em Deus e por Ele motivado, vivido na relação com o próximo e com as criaturas divinas, é assim o caminho para o encontro pessoal e comunitário com Deus.

* E. Cambón, Um Dio assente che inquieta e provoca, Effatà Editrice, Cantalupa (Torino).

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