Regresso à realidade, uma vez mais, após uma semana de férias em Fátima com jovens e adultos com deficiência. O regresso à realidade traz sempre um certo sabor amargo porque, enquanto lá estamos, o tempo quotidiano não importa, o que acontece lá fora não importa porque parece que não acontece; importa apenas o tempo dos encontros, o tempo que dedicamos uns aos outros como uma família que já não se vê há demasiado tempo e quer recuperar o tempo que passou – mesmo quando nos conhecemos apenas durante essa semana.
Também uma vez mais, ao falar com entusiasmo desta(s) semana(s) de férias a amigos ou a (des)conhecidos, as pessoas que me ouvem perguntam-me o que faço, se eu gosto mesmo de lá estar e, normalmente, terminam sempre dizendo “eu acho que não seria capaz (…) eu só não me inscrevo porque acho que não era capaz de lidar com essas pessoas, acho que não estaria à altura (…) ainda por cima ficar com eles no quarto e cuidar deles no que for preciso, eu não conseguia fazer isso”. E eu respondo o que tantas vezes já respondi e no qual continuo a acreditar “acho que qualquer um seria capaz, desde que estivesse disposto a sair da sua zona de conforto; aí tudo pode acontecer e aquilo que deixamos que aconteça fora do nosso controlo pode ser maravilhoso!”, ou respondo também “não saberás se és capaz se nunca experimentares; eu própria, antes de fazer a experiência, também achava que não ia conseguir, ou que ia fazer asneira, ou nem sequer me tinha passado antes pela cabeça estar a passar férias com pessoas com deficiência, e agora já faz parte de mim; posso dizer que, se calhar, foi mesmo a experiência que mais mudou a minha vida”.
Nestes últimos dias, como de costume, abordaram-me uma vez mais neste sentido e estas foram as respostas que dei. Mas, logo a seguir à conversa, apercebi-me que não poderia ser mais esta a minha resposta ou, pelo menos, não podia ficar por aqui. Aquilo que devia ter respondido quando me disseram “eu acho que não sou capaz” era “temos de ser capazes!”. Temos de ser!
Em primeiro lugar, porque aqueles pais que precisam de uma semana de descanso podiam ser os nossos pais, podíamos ser nós, podiam ser os nossos melhores amigos… E aquelas pessoas que têm deficiência (porque nasceram com ela ou porque a adquiriram ao longo da vida) e que, normalmente, vivem escondidas, à margem da sociedade, que são olhadas com pena e tantas vezes com medo, e que, sabe Deus, nunca saíram do seu meio familiar para conviver com outras pessoas, podíamos (e podemos) ser nós, podem ser os nossos filhos, podem ser os nossos netos, podem vir a ser os nossos pais.
Ao escrever isto parece que já consigo ouvir as vozes de algumas pessoas mais impressionáveis a dizerem-me “ai, credo, vira para lá a boca!” ou “olha que conversa, Deus nos livre!”, como se de uma superstição se tratasse ou como se tivessem o poder de controlar tudo através de um voto de silêncio. E o problema diário destas famílias é precisamente esse! Ninguém fala, ninguém olha com compaixão (não falo dos olhares de pena ou dos olhares de lado, esses até são demasiados, principalmente quando há barulho a mais dentro da igreja, ou gritos na esplanada ao lado, ou na praia nas raras vezes em que vão à praia, ou nas compras, ou em todo o lado), ninguém se deixa tocar. Ninguém diz nada e aquela realidade passa a não existir para nós e, por isso, não temos que nos preocupar com ela, não nos diz respeito, não nos toca pessoalmente e, na prática, vivemos como se ela não existisse. Talvez porque tenhamos medo de encará-la como uma realidade possível na nossa vida e, por isso, preferimos convencer-nos infantilmente de que se nos afastarmos o suficiente de uma realidade ela parecerá menos real ou menos possível…
O problema começa logo em nós, na nossa postura, na forma como olhamos, na forma como achamos que devemos ter pena de quem está numa cadeira de rodas ou a babar-se ao invés de considerarmos a possibilidade de aquela pessoa já ser feliz ou de ter tanto mas tanto para dar, para amar, para ensinar… mesmo quando não fala! Conheci e conheço tantas pessoas que falam através de olhares, de sorrisos, de abraços, de gritos que tantas vezes são expressão de alegria quando não se consegue dizer “estou contente” ou “gosto de ti”… Que têm demonstrações de amor mais espontâneas e genuínas do que nós que guardamos sempre para amanhã ou para depois porque pode parecer mal ou porque achamos que teremos para sempre junto de nós aqueles que amamos. Mas aprender a reconhecer estes sinais exige tempo, dedicação, e, nesse aspeto, os pais e mães (e às vezes avós) que amam profundamente os seus filhos são os melhores intérpretes, e isso nota-se!
Em segundo lugar, porque se soubéssemos o que estas famílias têm para nos ensinar com o seu testemunho, com a forma simples com que foram forçados a encarar a vida – ao contrário de nós que passamos a vida a complicar o que é simples e exigimos sempre mais e mais para o nosso conforto e bem estar pessoais – se soubéssemos que podíamos aprender tanto… quero acreditar que iríamos precisamente à procura delas! Porque quando nos permitimos aprender com “aqueles de quem ninguém espera nada”, quando nos deixamos tocar, abraçar, interior e exteriormente, a nossa realidade já não cabe nos mesmos padrões de antigamente; é impossível ficar indiferente, olhar as vidas à nossa volta (e a nossa própria vida) com os mesmos olhos. Não com aquele espírito de dar graças a Deus porque “ainda bem que não sou eu” mas com o espírito de mudança perante uma sociedade na qual não faz sentido estas famílias se esconderem para não ferirem os olhares dos outros ou para não chocar as crianças (como tantas vezes dizemos nós, adultos)…!
Este projeto de que falo chama-se hoje “Vem para o meio”, antes conhecido como “Férias para pais de pessoas com deficiência”. Não confundamos, não são férias com deficientes, são férias com pessoas com deficiência porque a pessoa é muito mais do que os limites que tem, muito mais do que o seu corpo ou do que a sua mente por si só.
Aos jovens que, tal como eu, já se questionaram e tiveram dúvidas sobre se se deveriam inscrever como voluntários numa semana de férias como estas, depois de tudo o que escrevi deixo-vos só um apontamento final: é uma semana das vossas vidas! Mesmo que acabem por não gostar, é uma semana… E são férias! Estas famílias existem e vivem todo o ano, ano após ano, e normalmente sem férias. Que mal vos pode fazer uma semana? De que é que têm medo? O que é que pode mudar assim tanto na vossa vida habitual?
Confiem, amigos. Pois vão perceber por vocês próprios que, se calhar, pode mudar e muito…