A Sé de Leiria acolheu, na noite de 17 de abril, a Missa da Ceia do Senhor, presidida pelo bispo diocesano, D. José Ornelas. Esta celebração solene marca o começo do Tríduo Pascal, o tempo mais importante do calendário litúrgico cristão, no qual se condensam os mistérios maiores da fé: a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
A Missa da Ceia do Senhor é, desde os primeiros séculos da Igreja, o memorial da instituição da Eucaristia e do mandamento novo do amor. Nela se revive, com profunda densidade simbólica, o momento em que Jesus, reunido com os seus discípulos, se entrega no pão e no vinho, antecipando a doação total na cruz. A celebração inclui também o rito do lava-pés, gesto profundamente evocativo com o qual o Mestre revelou o coração da sua missão: servir até ao fim.
“Preparemo-nos para participar”: o convite do bispo de Leiria-Fátima
A assembleia reunida na Sé foi desde o início convidada a entrar no espírito da celebração. D. José Ornelas introduziu a liturgia recordando o desejo intenso de Jesus de celebrar a Páscoa com os seus discípulos: “Desejei ardentemente celebrar convosco esta Páscoa, porque vos digo que não tornarei a celebrá-la até que se cumpra no Reino de Deus.”
Estas palavras, retiradas do Evangelho, foram propostas pelo bispo como convocatória directa à assembleia: “Também para nós, hoje, esta palavra é dirigida.” Jesus, afirmou, convida cada um a entrar nesta ceia da entrega, onde se antecipa o dom radical da cruz e se revela o amor de Deus por toda a humanidade. “Preparemo-nos, pois, para participar nela, dispondo o nosso coração para acolher o Senhor”, concluiu.
A Ceia, a libertação e o dom: uma pedagogia da esperança
Na homilia, D. José Ornelas guiou a assembleia numa leitura alargada da Páscoa, a partir das suas raízes bíblicas e humanas. Recordando a origem ancestral da festa entre os nómadas do deserto — como celebração da passagem das pastagens de inverno para as de verão —, o prelado destacou a dimensão antropológica e simbólica da Páscoa como momento de transição, de perigo e de renovação da vida. “Páscoa significa precisamente isso: festa da passagem”, afirmou.
Ligando essa tradição aos acontecimentos do Êxodo, D. José explicou como Israel passou a celebrar a libertação da escravidão como centro da sua identidade: “Nós somos povo, povo livre, porque Deus nos resgatou.” Essa memória — assinalada com o gesto ritual da refeição pascal — atravessou gerações, mesmo nos contextos mais adversos, como nos campos de concentração, onde se procurava celebrar a Páscoa como sinal de esperança.
“É essa função de esperança, de vida e de confiança na acção libertadora de Deus que Jesus também celebra com os discípulos”, afirmou.
O gesto do lava-pés: uma lição de serviço e comunhão
Um dos momentos mais significativos da celebração foi o rito do lava-pés. Depois da homilia, D. José Ornelas lavou e enxugou os pés a doze paroquianos, entre jovens e adultos, num gesto que recupera o que Jesus realizou naquela noite com os seus discípulos.
“Se Eu, o Mestre e o Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros” — recordou o bispo, citando o Evangelho segundo São João. Com simplicidade e reverência, repetiu o gesto do Mestre, evidenciando a dimensão concreta e afectiva do serviço. “Era um serviço com afecto”, explicou, referindo que o lava-pés, mesmo nas famílias comuns, era um gesto de cuidado, não apenas um sinal de humildade.
Este gesto, habitualmente associado ao trabalho dos servos, assume em Jesus uma radical inversão de papéis: o Senhor serve. A autoridade manifesta-se no amor e no dom. E esse dom, insistiu D. José, é um convite a cada baptizado para viver a fé como serviço mútuo.
“Isto é o meu corpo”: a Eucaristia como dom e desafio
A celebração prosseguiu com a liturgia eucarística, centro da Ceia do Senhor. Na homilia, o bispo tinha destacado que o gesto de Jesus ao partir o pão e oferecer o cálice não é apenas simbólico: é o princípio de uma vida nova. “Este pão é mais do que alimento físico: é um novo coração, uma esperança nova, uma vida nova. É o próprio Jesus.”
Ao entregar o pão e o vinho como o seu corpo e o seu sangue, Jesus não propõe apenas uma recordação, mas um caminho. “Comer este pão é interiorizar a sua vida, o seu modo de amar, de servir, de perdoar.” A Eucaristia, explicou, é dom e desafio: ser transformado por Cristo para viver como Ele viveu.
O vinho, sinal de força e alegria, torna-se no cálice da nova aliança, o sinal de uma vida oferecida até ao fim. “A minha vida, que chega ao fim, passa agora para vós.” Ao dizer “Tomai este cálice”, Jesus entrega-se inteiramente, confiando à sua comunidade o projecto do Reino.
O altar permanece desnudado: silêncio e expectativa
Após a comunhão, não houve bênção final nem despedida. Seguindo a tradição litúrgica, o altar foi desnudado em silêncio, os vasos sagrados foram levados com reverência, e a assembleia permaneceu em oração. O Santíssimo Sacramento foi trasladado para o lugar da adoração, num gesto que prepara a vigília e a oração junto do Senhor no Horto das Oliveiras.
Começa, assim, a travessia do Tríduo Pascal — tempo de contemplação e de esperança, onde o mistério da fé se faz caminho e alimento.
No coração desta noite, marcada pelo gesto do serviço, pelo pão repartido e pelo silêncio expectante, permanece o convite de Jesus: “Fazei isto em memória de Mim.” É memória viva, actual, que continua a formar a comunidade cristã como povo liberto e servidor, no meio do mundo.
Transcrição integral da homilia proferida por D. José Ornelas
Esta é uma noite muito especial na tradição da Igreja — e muito antes dela. Como ouvimos na primeira leitura, é o dia em que Israel celebra a festa da libertação, a sua libertação do Egipto, da escravidão. Ainda hoje, desde mil e tal anos antes de Jesus, Israel recorda esta libertação, porque Deus, através de Moisés, libertou o povo para que fosse um povo livre, com identidade própria e dignidade, um povo que se deixasse guiar pela orientação do seu Deus.
Na realidade, era uma festa ainda mais antiga, pois os nómadas do deserto — e, nessa altura, Israel era um povo nómada — celebravam a passagem das pastagens de inverno para as pastagens de verão, levando os rebanhos para o deserto. Também entre nós havia práticas semelhantes nas serras. Por exemplo, na Serra da Estrela — não sei se há aqui alguém dessas regiões —, na primavera, os rebanhos eram levados para a montanha, onde havia muitos perigos. Fazia-se então uma festa: a festa da passagem. E Páscoa significa precisamente isso: festa da passagem. Era também a festa da renovação da natureza, do regresso da vida após o tempo difícil do inverno.
É provavelmente por coincidência com esta celebração que Israel faz a experiência da saída do Egipto. E essa festa torna-se o centro da sua identidade. “Nós somos povo, povo livre, porque Deus nos resgatou.”
De ano em ano, como ouvimos na leitura, celebrava-se esta festa com a imolação de um cordeiro, que era assado e partilhado em família. Esta tradição manteve-se sempre ao longo da história, como ponto de identificação e de encorajamento — mesmo nos momentos mais difíceis, como nos campos de concentração onde morreram milhões de judeus. Quando chegava a Páscoa, procurava-se celebrá-la, mesmo na miséria, como sinal de esperança e de vida.
É essa função de esperança, de vida e de confiança na acção libertadora de Deus que Jesus também celebra com os discípulos. É a festa da Páscoa. Dizia-se então — diziam os rabinos — que já não se celebrava, como na leitura de hoje, com o bordão na mão e as sandálias calçadas, prontos para partir, mas mantinha-se esse sentido simbólico.
À maneira dos romanos, usavam-se sofás estendidos, e os rabinos ensinavam: quem não tiver desses sofás, ao menos que se sente e apoie o cotovelo na mesa e diga: “Eu sou um cidadão livre, porque Deus me libertou.” Esta era a festa da libertação, da dignidade, da esperança, da afirmação da fé de Israel.
É esta festa que Jesus quer celebrar com os discípulos. E diz: “Desejei tanto celebrar convosco esta Páscoa!” Mas Jesus sabe que esta é também uma festa de despedida. Ele quer deixar algo determinante à sua comunidade — esta comunidade de discípulos que sobe a Jerusalém com sentimentos diversos: uns com medo, outros com o desejo de ver Jesus no poder, outros com sonhos diferentes. Jesus quer que compreendam as coisas de outro modo. E os seus discursos e gestos significam isso.
Em primeiro lugar, Jesus quebra o ritual da Páscoa. Como ouvimos no Evangelho de São João, despe-se da capa — sinal de solenidade —, põe uma toalha à cintura e começa a lavar os pés aos discípulos. Um gesto que vamos repetir daqui a pouco. Pedro revolta-se: “Não pode ser! Tu és o mestre. És tu que nos lavas os pés?” Para Pedro, seria mais natural ser ele a lavar os pés de Jesus. Mas Jesus responde: “Se eu, o Mestre e o Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros.”
Este gesto, que hoje nos pode parecer simbólico, era muito concreto naquela altura. Eu venho de uma tradição onde, à noite, lavavam-se os pés. Não havia água canalizada, era preciso trazê-la às costas. Lavavam-se os pés, as mãos, a cara. Era um gesto de intimidade, até de brincadeira, de afecto.
Diz-se que era um trabalho reservado aos servos, mas nem sempre era assim. Talvez entre os ricos, sim, mas nas famílias comuns, lavar os pés era um gesto de cuidado e de carinho. Era um serviço com afecto. E é isso que Jesus faz. Contudo, aos rabinos estava proibido lavar os pés, mesmo aos seus pais, porque a sua função era interpretar a lei. Daí a surpresa e a resistência de Pedro.
Mas Jesus insiste: “Pedro, isto não é apenas delicadeza. Se não aceitares que Eu te lave os pés, não tens parte comigo.” É um gesto que significa comunhão: é preciso acolher o dom de Jesus para ter acesso à vida que Ele oferece.
São João não narra a instituição da Eucaristia como os outros evangelistas, mas apresenta este gesto do lava-pés como central. Porque é com este gesto que Jesus “tira a veste”, isto é, entrega a sua vida. E quando volta a vestir-se e se senta à mesa, é já o Senhor ressuscitado que fala. A partir daqui, Jesus dirige aos discípulos um longo discurso — capítulos 13 a 17 do Evangelho de São João —, que é bom ler nesta noite, para compreender o verdadeiro significado da Ceia e da paixão.
Depois, Jesus toma o pão, dá graças, parte e diz: “Isto é o meu corpo, entregue por vós.” Os discípulos talvez não tenham compreendido bem. Mas Jesus diz: “Compreendereis depois.”
O que significa isto? Significa que este pão é o seu corpo. Jesus já tinha falado assim na multiplicação dos pães: tomou o pão, deu graças e distribuiu-o. Toda a gente tem fome — fome de pão, mas também fome de sentido, de vida, de esperança. E Jesus alimenta essa multidão porque sente compaixão.
Este é também o primeiro sentido da Eucaristia: Jesus dá o pão e ensina que todos devem ter acesso aos bens que Deus criou para todos. Ele toma o pão, dá graças — reconhece que tudo vem de Deus —, parte-o e entrega-o: “Isto é o meu corpo.”
Dar graças é reconhecer o dom. É o que fazemos no ofertório: damos graças pelo pão que recebemos da bondade de Deus, que se torna para nós pão da vida.
Na multiplicação dos pães, quando Jesus pergunta o que havia, um menino oferece cinco pães e dois peixes. Quando a comunidade entrega o que tem nas mãos de Jesus, nada falta a ninguém.
Mas Jesus diz: “Quem come deste pão, voltará a ter fome. Mas quem comer o pão que Eu der, esse terá vida eterna.” Este pão é mais do que alimento físico: é um novo coração, uma esperança nova, uma vida nova. É o próprio Jesus.
Comer este pão é interiorizar a sua vida, o seu modo de amar, de servir, de perdoar. É acolher o Espírito do Pai, que nos transforma. E Jesus mostra como se vive com esse Espírito: vai ao encontro de quem precisa, vive unido ao Pai, dá a vida.
Por isso, Jesus diz: “Tomai e comei.” Pede que peguemos no pão, que o recebamos com fé. Como a samaritana pediu: “Dá-me dessa água”, também nós dizemos: “Dá-me desse pão.” E ao responder “Ámen”, dizemos: “Sim, eu creio. Eu quero.”
É um dom e um desafio: deixar que a nossa vida seja transformada por Ele. Como dizia São Paulo: “Para mim, viver é Cristo.”
Depois, Jesus toma o cálice. O vinho era sinal de força e alegria. Na ceia pascal, havia quatro taças. Na última, Jesus toma a taça e diz: “Este é o cálice da nova aliança no meu sangue.”
O sangue é sinal de vida, mas derramado é sinal de morte. É como se dissesse: “A minha vida, que chega ao fim, passa agora para vós.” No alto da cruz, do peito aberto de Jesus saem sangue e água — a vida prometida, a vida do Espírito.
“Tomai este cálice”, diz Jesus. “Aceitai a minha vida. Façam dela o vosso projecto, o vosso modo de viver.” Deixem que o Espírito vos transforme.
Este é o sentido profundo da Eucaristia: unir-nos a Jesus, ser transformados por Ele, viver como Ele viveu, sonhar como Ele sonhou, esperar como Ele esperou. Jesus diz: “Não voltarei a beber do fruto da videira até que se cumpra no Reino de Deus.” A aliança não termina aqui: continua, de outra forma, na plenitude.
Hoje damos graças ao Senhor porque veio ao nosso encontro, partilhou connosco a sua vida, fez-se homem como nós para que nos tornássemos como Ele: filhos e filhas do Pai. Esta é a nossa esperança.
Deixemos que o corpo e o sangue do Senhor sejam verdadeiramente o que nos une. Como dizia São Paulo, isto não é dado a um só, mas a todos. Jesus celebrou a primeira Eucaristia com os discípulos — estavam todos presentes. Nem todos foram fiéis no dia seguinte. Pedro fraquejou. Judas traiu. Mas Jesus quis recuperar a todos — e também a Judas. Só que Judas não aceitou.
Hoje, também nós somos convidados a aceitar o desafio de Jesus, para que, transformados por Ele, a nossa vida se torne sinal de fraternidade, de comunidade e de vida para todos.
Ámen.