É o filme mais falado nas últimas semanas. De certeza que já foi tema de conversa à mesa do café, ou numa refeição em família ou entre amigos. «Joker» retrata a história de uma personagem fictícia associada ao – também já conhecido herói de banda desenhada – Batman, o percuso de vida que o levou a tornar-se num assassino sem piedade, num vilão calculista sem nada a perder. Não, não vos vou falar das histórias aos quadradinhos, não vou falar de super-heróis nem de vilões. Vou falar de coisas mais importantes e também mais urgentes.
Não é a primeira vez nem será a última (felizmente!) que o cinema é usado como forma de passar uma mensagem real mascarada por um cenário aparentemente fictício. E este caso não foi diferente. A personagem que é tão conhecida no mundo da ficção como sendo o famoso vilão Joker, um homem manipulador que se caracteriza de palhaço, neste filme tem nome: Arthur. Neste filme, é dado a conhecer o seu passado, a infância a que foi sujeito, carente de amor e de carinho, uma infância marcada pela negligência e por maus-tratos. Mas não era preciso um filme para sabermos que este tipo de histórias também existem hoje em dia… e às vezes não tão longe assim.
Aquela criança acabou por crescer e, agora adulto, vive alheado do mundo, recatado no escuro como um animal na sua toca; vive com a mãe que tem uma doença mental que desistiu de tratar e, por isso, vivem os dois, um para o outro, sem rede de suporte, sem amigos, sem condições. Ele cuida da mãe que vai deixando de saber cuidar de si e de cuidar do espaço onde vivem os dois. Marcado pela história do seu passado, o Arthur desenvolveu um reflexo de riso exacerbado, desapropriado às ocasiões, e cresceu com a motivação de levar a alegria e a felicidade à vida das pessoas – tal como a mãe lhe dizia, tentando converter um problema que desenvolveu num dom e numa missão de vida; e, no meio de tanta miséria, ele sonhava tornar-se comediante e fazer rir os outros.
É importante mencionar que os filmes do Batman – nos quais a personagem Joker tem origem – procuram sempre retratar uma sociedade na qual as pessoas enloqueceram, em que esqueceram os valores básicos do respeito e do altruísmo e, por isso, vivem preocupadas apenas consigo mesmas e idolatram o poder e o dinheiro. Não pretendo ser pessimista, mas pensemos nalgumas realidades que conhecemos ou sobre as quais vamos ouvindo falar – serão estas realidades tão distantes das que se retratam nos filmes? E é aí que entra a história do Arthur. O Arthur é um homem como tantos outros, rotulado de louco numa sociedade que acha que domina por maioria, que acha que sabe tudo… um homem rotulado para sempre de doente mental e julgado como tal pelas próprias mãos dos juízes de rua que passam por ele e o olham de lado, que trocam comentários desagradáveis e (quantas vezes) profundamente maliciosos. E atenção, não estou a pôr em causa o diagnóstico, ele tinha de facto uma doença mental (que é diferente de ser doente mental!) mas o filme caracteriza muito bem todas as vezes que lhe foram barradas oportunidades e que foi alvo de gozo e de violência pela sua aparência, pela sua postura e pelos seus risos inoportunos. Mesmo quando arranjou uma estratégia para advertir as pessoas para o seu problema, tendo escrito num cartão a condição que desenvolveu (de se rir desenfreadamente sem conseguir parar), ainda assim teve pessoas que se afastaram dele por medo ou que o agrediram. Atrevo-me a dizer que foram as circunstâncias de vida e as permanentes pisadelas sociais e psicológicas que fizeram dele um doente mental e não o diagnóstico…
O filme vai avançando e vemos no que este homem se foi tornando, em primeiro lugar para se defender e depois para sentir que podia ter controlo sobre o que lhe acontecia, para castigar quem o tinha feito sofrer… e em última instância por adrenalina; porque até então a sua vida era meramente uma existência desconhecida, eram os seus desgostos, sofrimento e raiva acumulada… e agora, mesmo que fosse à custa de fazer sofrer os outros, ele era notado e era impossível sentir-se ameaçado porque todos o temiam, agora sim, com motivos para isso! É nesta pessoa que o Arthur se transforma, e o seu nome é esquecido, dando lugar a outro muito mais temível.
Não estou a apelar necessariamente à visualização do filme, até porque estou ciente de que não é um filme para qualquer idade, que comporta muitas cenas de violência e nem todos temos (nem temos que ter) a mesma tolerância visual a este tipo de imagens. Mas não é preciso ver o filme para pensarmos acerca destes assuntos.
Quando as dores são profundas, a pessoa julga que já não tem nada a perder e por isso já não sente a dor de magoar também os outros; aliás, sente que é a única forma de repararem na sua existência…
Meu Deus… poderemos nós imaginar tamanho sofrimento?…
Não estou a escrever estas coisas
para pensarmos todos em coro “coitadinho do doente mental…”
NÃO! Mas é importante termos a noção
de que as nossas palavras e as nossas ações podem magoar os outros e ir abrindo
feridas profundíssimas, quiçá irreparáveis… E tal como nas feridas reais, quando a ferida já é tão profunda e atinge
um estado tão maligno, deixa de doer… porque houve tecidos que morreram – mas
a ferida está lá e é tão difícil de cicatrizar…! Digo isto por reparar em
tantas pessoas que se maltratam verbal e fisicamente, que não são capazes de
perdoar, que não sorriem umas para as outras, que acham que têm o direito de
dizerem o que pensam sem medir as consequências porque isso já não é problema delas…
e isso deixa-me triste, faz-me por instantes perder a fé no bem, na bondade das
pessoas…
Ainda assim gosto de pensar que dentro de cada um de nós – mesmo dos mais calejados – habita um coração capaz: capaz de se compadecer, de tentar vestir a pele de outros, de se deixar surpreender pela diferença, e de pensar que, na vida, há valores que são essenciais que nunca se percam. E para o conseguir fazer em sociedade devo tentar fazê-lo primeiro comigo mesmo, na minha família e nos meus pequenos círculos sociais.