“Imperfeições há muitas, seu palerma”

Esta semana “perdi” um paciente. Na incessante luta de ser “suficientemente bom” dei de caras com a ambiguidade da minha própria insuficiência, com a moinha constante que é interrogarmo-nos: e agora, o que fazer?

Por Tiago Ferreira de Magalhães 

Durante os anos de formação, não obstante a qualidade do acompanhamento e da supervisão recebida, ninguém nos prepara efetivamente para a experiência visceral da falha. O murro no estômago que é o anseio de oferecer o cuidado e aceitação incondicional ao outro que esbarra duramente contra a realidade do trauma, da repetição, e das nossas próprias limitações. No meu caso particular, o perfeccionismo é velho companheiro. Ainda assim, nenhuma quantidade de perfeccionismo é suficiente para impedir que o mundo continue a girar sobre o eixo da imperfeição. É qualquer coisa que se sabe internamente, que se embrulha nas teorizações da prática clínica e da própria vivência, mas ainda assim, traiçoeira, insiste em se insurgir e manifestar.

O luto das perdas dá-me para isto, devaneios mais ou menos direcionados à volta da questão que me consome. Neste caso, o perfeccionismo, a felicidade, a falha, a busca incessante desse lugar que está para além de nós mesmos, esse ideal inatingível. São muitas as vezes que em sessão assisto ao reconhecimento de que se procura algo que está para além do possível e, ainda assim, nos atrai incessantemente. A demanda da adição que mais não é que uma adição à demanda. E corremos, não é verdade? Corremos em busca de qualquer coisa que fica para lá das palavras. E do que andamos realmente à procura? Por que estamos tão determinados a correr atrás dessa promessa de encontrarmos a chave para sermos felizes e capazes em todos os momentos? Ter mais, fazer mais, ser mais, parecer mais? Mais rápido, mais fácil, mais perfeito – parece ser esta a solução encontrada para uma espécie de vazio existencial, para este medo-que-vem-sabe-se-lá-de-onde que nos assola. Mas será este sentimento novo?

Em 1572, Luís Vaz de Camões compunha o grande épico da literatura portuguesa, Os Lusíadas. Obra maior sobre os feitos de um conjunto de heróis tornados símbolo apoteótico de uma nação, suplantando a sua condição fundamentalmente humana, elevados a deuses – “esforçados / mais do que prometia a força humana…”. Ora, no decorrer da epopeia, os nossos heróis cruzaram-se com o terrível Adamastor. Incapaz de conquistar a deusa Tétis por seus próprios dons, entrega-se à guerra como forma de ganhar o favor da amada. Contudo, o gigante é traído na sua própria ilusão. Louco de amor entrega-se à imagem de Tétis sem se aperceber que se entregava a um rochedo. A desilusão amorosa é a ferida que faz tombar o gigante – a depressão. Imerso em mágoa procura um lugar onde não haja quem possa atestar a sua tristeza e é condenado pelos deuses. Da carne do Gigante-Homem (ou do Homem-Gigante) é feita terra, de seus ossos se faz a pedra, o seu corpo alongado pelo mar – torna-se o temível Cabo das Tormentas e observa Tétis banhar-se repetidamente, ao longe.

Perante a armada portuguesa amaldiçoa o atrevimento dos exploradores (talvez amaldiçoe o seu próprio atrevimento) e profetiza a desgraça. Contudo, é numa medonha confidência que encontra a sua rendição. Chora e a “nuvem negra” desfaz-se, o mar ressoa. Adamastor é primeiro o gigante aprisionado na pedra, depois o homem renovado da pedra pelo poder da palavra – vislumbre dessa sua “estranha humanidade”. Nas palavras do professor e psicanalista Coimbra de Matos, “o génio aprisionado no tortuoso labirinto da loucura”, que Vasco da Gama, qual escultor, liberta. No Cabo das Tormentas é fundado o Cabo da Boa Esperança. E o que é este Cabo da Boa Esperança se não o Titã tornado homem na sua profunda vulnerabilidade?

O que múltiplos estudos nos têm vindo a mostrar é que a negação ou supressão das emoções negativas conduz a experienciá-las de forma mais intensa e prolongada, promovendo uma certa disfunção emocional. Ou, em palavras comuns, quanto mais fugimos de nos sentirmos mal, mais nos arriscamos a sentirmo-nos pior.

Nas palavras de Sérgio de Gouvêa Franco, um dos nomes de referência na psicanálise brasileira, o caminho é entre pedras: magoa os pés. E, acrescenta, a busca incessante da perfeição é um totem ou um símbolo dos nossos desejos infantis reprimidos. Seja ela a perfeição no trabalho, no mundo, em nós próprios. Traz para o nosso presente uma frustração primária que é a experiência de amor condicional associada à infância. O perfeccionismo nasce comummente no seio da insegurança que experimentamos primeiro na infância, quando somos crianças e sentimos a necessidade de aprovação, aceitação e afeto de figuras de referência nem sempre fáceis de agradar. Em poucas palavras, quando repetidamente sentimos em criança que nunca é suficiente. Assim, a criança poderá acreditar que se for perfeita, então receberá a confirmação que procura. Sobrevalorizando a forma como se comporta em lugar da autenticidade desse mesmo comportamento e substituindo o gesto espontâneo pelo padrão. É aqui que começa muitas vezes um processo que se repete na vida adulta e que condiciona os seres humanos a encaixarem-se num projeto feito e sonhado por outros para si. Mais tarde, quer na adolescência, quer na idade adulta, as tendências perfeccionistas poderão evoluir para uma forma de combater a autodepreciação.

A procura de um ideal é não só sedutora como necessária. Norteia, conduz, aproxima-nos da concretização de um potencial que identificamos como latente em nós mesmos e no mundo que nos rodeia. Contudo, a imperfeição é condição fundamental da existência humana, e é tão simplesmente a realidade, por mais que desejássemos que fosse outra. Ir atrás de um sonho ou da realização de alguma coisa que nos eleva é bastante diferente de acreditarmos que faremos tudo bem e que o preço a pagar se assim não for é um sofrimento atroz.

A resposta que os psicólogos tendem a dar a esta espécie de ultimatum da humanidade em alcançar a perfeição é trocar os objetivos de “mais”, “maior”, “melhor” pelo advérbio “simplesmente”. É mais fácil de dizer do que fazer, mas o que recomendam é que de forma simples cada um de nós seja o que é e não corra atrás de superlativos, sobretudo quando impostos por uma ideia irrealista da condição humana. Sem massagens ao ego, sem inflações ou deflações, sem rejeitar ou alienar as partes obscuras, as partes profundamente indesejáveis do que somos. Aliás, fazendo exatamente o contrário. O que o episódio sobre a figura de Adamastor nos mostra é que é precisamente perante o reconhecimento e a rendição à inevitabilidade da dor, do sofrimento e do desarranjo entre o desejo e o prazer, que o “Gigante” dissipa a “nuvem negra”.

“Sou um bocadinho perfeccionista, é saudável, ajuda-me a fazer as coisas bem”

Bréne Brown, investigadora na Universidade de Houston Graduate College of Social Work, relembra-nos que “é sedutor querer ser perfeito e intocável, mas isso não existe na experiência humana”. Responsável por uma extensa investigação sobre autenticidade e vulnerabilidade, concluiu que a diferença fundamental entre aqueles que são autênticos e os que não o são é simplesmente escolher ser autêntico repetidamente. Para tal, é necessário libertarmo-nos do julgamento dos outros e de nós próprios.

Da investigação realizada por Bréne Brown resulta que o perfeccionismo não é um traço positivo associado à procura da excelência ou à ambição saudável, mas antes uma forma de pensar e de sentir que promove que se evite ou minimize a vergonha, a culpa e o julgamento. Dito noutras palavras, um livre-passe que assegura a libertação face aos julgamentos de outros. O medo do olhar do outro – que parece ser o aspeto fundamentalmente oculto por detrás do perfeccionismo – assume-se perante a vulnerabilidade – e se me virem como realmente sou? E se não for suficiente? E se não for o que pensam de mim?

Assim, o perfeccionismo assume duas facetas – o evitamento da vergonha e da humilhação de nunca alcançarmos o ideal grandioso ou o evitamento da culpa pela incapacidade de dar resposta às exigências desmedidas que impomos sobre nós próprios. Quando a autoestima não é suficientemente nutrida, ou se desenvolve com “buracos”, e onde o perfeccionismo está presente, comummente verifica-se um medo terrível de que as imperfeições sejam “a prova” de” uma “personalidade defeituosa e inaceitável”, que deve a todo o custo ser “escondida” ou reparada.

Ora, se o perfeccionismo nasce motivado por uma aceitação incondicional que nunca existiu, não será a contínua procura de ser mais, melhor, mais rápido, mais forte uma danada repetição?

De facto, a literatura científica tem vindo a demonstrar repetidamente que quanto maior é o nível de perfeccionismo, mais nos sentimos deprimidos, ansiosos e stressados. O que sabemos é que é na qualidade das relações que estabelecemos, com nós próprios e com os outros, e dos ambientes em que nos inserimos, que parece ser possível encontrar algum contraponto para o perfeccionismo. Isto é, onde há a aceitação do que se é, e por consequência do que os outros são, e onde a honestidade emocional e a imperfeição são bem-vindas e utilizadas de forma construtiva, parece ser possível encontrar um antídoto para a “prisão do perfeccionismo”.

Claro está, é mais fácil dito que feito. E enquanto escrevo um artigo sobre a perfeição, dou por mim a tentar escrever o artigo perfeito (não é deliciosa a nossa “estranha humanidade”?). O truque aqui não é negar, reprimir ou condenar o que sentimos. Forçarmo-nos a eliminar, a apagar ou a modificar as nossas emoções. Antes, passa pela aceitação incondicional do que somos. Ousar estar bem onde se está, com o que se tem e com o que se é, sabendo que não há vida sem conflito. Nas palavras sábias de Michael Scott, icónica personagem da série americana The Office, talvez parte da beleza da vida seja precisamente o que se faz de uma sucessão de momentos em que simplesmente não sabemos o que fazer. Ou como ele diz, “eu sabia exatamente o que fazer, mas de forma muito mais realista não fazia ideia de o que fazer”.

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