Francisco, o Papa que não nos deixa sozinhos

“O drama que estamos a atravessar impele-nos a levar a sério o que é sério, a não nos perdermos em coisas de pouco valor; a redescobrir que a vida não serve, se não é para servir. Porque a vida mede-se pelo amor”

Texto escrito por Helena Oliveira, publicado em https://www.ver.pt

Vimo-lo a sair sozinho e a atravessar as ruas desertas de Roma, tendo como destino dois santuários, onde rezou pelo fim do surto de coronavírus. Vimo-lo a caminhar sozinho, na majestosa e completamente vazia Praça de São Pedro, onde proferiu uma oração histórica pela humanidade. Vimo-lo (quase) sozinho a celebrar a Missa de Ramos na Basílica de São Pedro, à porta fechada. Vimo-lo todos os dias, de uma forma ou de outra, a expressar a sua proximidade e afecto, numa altura em que nunca estivemos tão fisicamente distantes uns dos outros

Desde o eclodir da pandemia que Francisco tem estado presente, ainda mais do que o habitual, através da força das suas palavras. E o seu maior esforço é não esquecer-se de ninguém, abraçar todos na mesma prece e fazer lembrar que “ninguém se salva sozinho”. Todas as manhãs, na Casa Santa Marta, o Papa dedica a sua homilia a grupos particulares de pessoas que estão a sofrer os efeitos da pandemia. E todos os dias profere palavras de encorajamento, envia mensagens por vídeo, alerta para a discriminação dos mais velhos, para a defesa dos sem-abrigo, recorda os que passam problemas económicos, saúda os pobres, apela à solidariedade para com os povos mais vulneráveis, reza pelos que sofrem e pelos que ajudam, e também pelos que morrem sozinhos. Desde o iniciar da crise pandémica que Francisco nos exorta a sentir que, por muito isolados que estejamos, não estamos sós.

E sobre esta Páscoa vivida em período de confinamento, diz: “Nestes dias da Semana Santa, em casa, permaneçamos diante do Crucificado, medida do amor de Deus por nós. Diante de Deus, que nos serve até dar a vida, peçamos a graça de viver para servir. Procuremos contactar quem sofre, quem está sozinho e necessitado. Não pensemos só naquilo que nos falta, mas no bem que podemos fazer”.

Porque para muitos os tempos são de desespero e solidão, recordar algumas das mensagens que Francisco proferiu ao longo destas últimas semanas poderá ajudar a redescobrir a esperança, a encontrar o caminho num beco aparentemente sem saída e, sobretudo, a termos coragem de continuar a unirmo-nos numa luta que é comum a recordar, tal como o Papa o fez na missa de Ramos no passado Domingo, uma verdade que, de alguma forma, nos sossega: “não estamos sozinhos”.

“Todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento”

Um céu azul-escuro. A chuva a cair sobre os passos lentos do Papa a atravessar uma Praça de S. Pedro deserta. A subida de degraus para uma plataforma iluminada pela fraca luz de seis candelabros. E Francisco a rezar, solitário, instando o mundo a encarar esta crise como uma teste de solidariedade e como uma evocação dos valores humanos mais básicos. Foi no passado dia 27 de Março, as imagens correram mundo e devem ter sido poucos, católicos ou não, os que ficaram indiferentes a esta oração pela Humanidade, seguida de uma bênção extraordinária pelo fim da pandemia Covid-19. E, tal como o fim de tarde chuvoso e escuro, assim começou a homilia:

“Desde há semanas que parece o entardecer, parece cair a noite. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo dum silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem: pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos”.

Com a sua forma muito própria de traduzir a realidade – e que imagem mais genuína transmite estas palavras – Francisco relembrou ainda que, tal como os discípulos do Evangelho, “fomos surpreendidos por uma tempestade inesperada e furibunda”. Afirmando que “demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados mas ao mesmo tempo importantes e necessários”, Francisco fez eco da ideia que, desde o deflagrar da pandemia, tem vindo continuamente a expressar: a de que somos “todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento” e que é “neste barco que estamos todos”. E continuando a falar nos discípulos que, “falando a uma só voz, dizem angustiados «vamos perecer» (cf. 4, 38)”, reforça esta ideia de comunhão, apelando à solidariedade mundial no combate á epidemia, afirmando que já compreendemos que ninguém poderá vencer esta “tempestade” por conta própria, “mas só o conseguiremos juntos”.

No meio desta tempestade, recorda ainda o que todos nós temos vindo gradualmente a sentir face à impotência perante a pandemia e sobre a vida que, de momento e sem data de fim, nos obriga a manter tudo em suspenso: “desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projectos, os nossos hábitos e prioridades”.

E porque também não se cansa de apelar a uma mudança de atitude por parte da sociedade contemporânea, afirma igualmente que esta mesma tempestade “mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado aquilo que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à nossa comunidade” e que, com ela, “caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”.

Realçando que num mundo em que todos avançamos a toda a velocidade, sentindo-nos “em tudo fortes e capazes”, sublinha que “na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa”. Fazendo eco de muitas das críticas que, ao longo de sete anos de pontificado tem vindo a partilhar com o mundo, o Papa sublinhou ainda que “não nos detivemos perante os Teus apelos, não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançámos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente”. “Agora nós, sentindo-nos em mar agitado, imploramos-Te: «Acorda, Senhor!»”, pediu ainda o Santo Padre.

Tal como tem vindo a fazer ao longo das últimas semanas, Francisco dedica uma parte da sua homilia aos “corajosos e generosos” que são hoje os novos “heróis” das cenas de terror a que assistimos todos os dias: “é a vida do Espírito, capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espectáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”.

E lembra também aqueles que, numa paciência difícil, tentam não desmoralizar, continuam a semear a esperança e a evitar o pânico, numa atitude que denomina como “co-responsabilidade”: “Quantos pais, mães, avôs e avós, professores mostram às nossas crianças, com pequenos gestos do dia-a-dia, como enfrentar e atravessar uma crise, readaptando hábitos, levantando o olhar e estimulando a oração! Quantas pessoas rezam, se imolam e intercedem pelo bem de todos!”.

Voltando a repetir que não somos auto-suficientes e que sozinhos nos afundamos, afirma ainda que “precisamos do Senhor como os antigos navegadores das estrelas”. E exorta a que “convidemos Jesus a subir para o barco da nossa vida. Confiemos-Lhe os nossos medos, para que Ele os vença. Com Ele a bordo, experimentaremos – como os discípulos – que não há naufrágio”. Francisco diz também que, no meio desta tempestade, somos interpelados pelo Senhor, que nos convida a “despertar e a activar a solidariedade e a esperança, capazes de dar solidez, apoio e significado a estas horas em que tudo parece naufragar”.

Para “acordar e reanimar a nossa fé pascal”, o Papa relembra que abraçar a cruz de Cristo significa “encontrar a coragem de abraçar todas as contrariedades da hora actual, abandonando por um momento a nossa ânsia de omnipotência e possessão, para dar espaço à criatividade que só o Espírito é capaz de suscitar”. Significa, igualmente, “encontrar a coragem de abrir espaços onde todos possam sentir-se chamados e permitir novas formas de hospitalidade, de fraternidade e de solidariedade”. E, acrescenta: “Na sua cruz, fomos salvos para acolher a esperança e deixar que seja ela a fortalecer e sustentar todas as medidas e estradas que nos possam ajudar a salvaguardar-nos e a salvaguardar. Abraçar o Senhor, para abraçar a esperança. Aqui está a força da fé, que liberta do medo e dá esperança”.

A sua emotiva mensagem termina com as seguintes palavras:

“Desta colunata que abraça Roma e o mundo desça sobre vós, como um abraço consolador, a bênção de Deus. Senhor, abençoa o mundo, dá saúde aos corpos e conforto aos corações! Pedes-nos para não ter medo; a nossa fé, porém, é fraca e sentimo-nos temerosos. Mas Tu, Senhor, não nos deixes à mercê da tempestade. Continua a repetir-nos: «Não tenhais medo!» (Mt14, 27). E nós, juntamente com Pedro, «confiamos-Te todas as nossas preocupações, porque Tu tens cuidado de nós»”.

“Porque a vida mede-se pelo amor”

No passado Domingo de Ramos, Francisco voltou a apelar à solidariedade, em particular para os que estão a sofrer e para os que se encontram sozinhos. “Quando nos sentimos encurralados, quando nos encontramos num beco sem saída, sem luz nem via de saída, quando parece que nem Deus responde, lembremo-nos que não estamos sozinhos”.

E porque, mais do que nunca, esta pandemia obriga a Humanidade a abandonar o supérfluo e a centrar-se no essencial, afirmou também na homilia: “O drama que estamos a atravessar impele-nos a levar a sério o que é sério, a não nos perdermos em coisas de pouco valor; a redescobrir que a vida não serve, se não é para servir. Porque a vida mede-se pelo amor”.

E o mesmo desafio deixou aos jovens: “Queridos amigos, olhai para os verdadeiros heróis que vêm à luz nestes dias: não são aqueles que têm fama, dinheiro e sucesso, mas aqueles que se oferecem para servir os outros. Senti-vos chamados a arriscar a vida”, apelou.

Nesta Páscoa, partilhamos este desafio do Papa, frágil mas forte, isolado mas próximo, que nos indica o caminho, que nos encoraja a sair das nossas preocupações, a arriscarmos o amor aos outros, sem medo porque não estamos sozinhos.

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