A propósito da notícia da atribuição do título de “Justo entre as Nações”, publicamos a biografia do padre Joaquim Carreira, sacerdote diocesano que se distinguiu pela fidelidade de serviço a Deus, à Igreja e aos perseguidos.
Servindo-nos da biografia publicada pelo seu sobrinho, padre João Carreira Mónico, apresentamos a vida e obra deste verdadeiro apóstolo do bem, na guerra e na paz.
Na Família: a vocação sacerdotal
Joaquim Carreira nasceu no Souto de Cima, Caranguejeira, em 1908. Seus pais, Joaquim Carreira e Maria Inácia, pequenos lavradores, cedo se preocuparam com a educação do pequenito Joaquim, o único rapaz do ranchinho de 5 filhos que Deus lhes concedeu.
Pais profundamente dedicados à família, ao trabalho e às coisas de Deus, não deixaram de segredar ao pequeno a vocação sacerdotal. Sobretudo a mãe que, sentada no muro da velha eira, acariciava a cabecita do seu filho, falando-lhe das coisas de Deus, de Fátima e do sacerdócio. Como mãe carinhosa, não escondia a alegria de contemplar a beleza do seu filho – de rosto redondinho e olhos vivos, escuros e alegres, cabelo forte e escuro. Um dia disse-lhe: “Olha lá, filho, e se Nossa Senhora quisesse que tu fosses padre? Tu não querias? Às vezes penso que Ela me deu este filhinho para ser padre, mas faça-se a Sua santa vontade! Se Ela te chamar, vai, meu filho, que vais bem, mas nunca sejas mau nem digas mal de ninguém. Reza sempre, mesmo no caminho da escola.”! No silêncio dos anos, a semente foi germinando até se tornar em árvore frondosa e cheia de frutos. Na agonia de minha mãe, tive pena de não lhe ter dito que queria ser padre. Ainda não entendia muito bem, o que era isso de ser padre, mas gostava muito do Sr. Prior. Tinha 8 anitos – confessou o filho, mais tarde. A saudade da mãe foi ferida que nunca fechou completamente, ao longo da vida. O pai, após a morte da esposa, vitimada pela pneumónica em 1918, àquelas que se ofereciam para ajudar e até para casar, respondia: “Se Deus quisesse que eu estivesse casado, não me levava a minha esposa e mãe de meus filhos. As aves do céu não semeiam nem colhem e Deus sustenta-as. Com fé em Deus, eu e os meus filhos, vamos suprir a falta da mãe”. A oração diária em família fazia parte da vida e da educação.
No Seminário: resposta-compromisso
O Joaquim fez a 3.ª classe na Caranguejeira. Depois foi para Monte Real, onde, com apenas 10 anitos, entre o trabalho de casa (ir à lenha e à fonte) e a escola, fez a 4ª classe. Preparou-se então para ingressar no Seminário de Leiria. Vencidas as resistências do pai, que se opunha por este ser o seu único rapaz, entra em 1920. Tinha 12 anos. No Seminário, foi aluno aplicado, distinto e alegre, revelando os seus talentos e o muito que tinha para dar. Com os colegas, fundou a revista manuscrita, “Vida Activa”.
Em Roma: por obediência
Por decisão do bispo de Leiria, D. José Alves Correia da Silva, foi enviado para Roma, em 1926, para continuar os estudos eclesiásticos na Universidade Pontifícia Gregoriana. Aí concluiu a Licenciatura em Filosofia e Direito Canónico e o Doutoramento em Teologia. A 19 de Setembro de 1931 foi ordenado sacerdote, em Roma. Neste mesmo ano regressou a Portugal, cheio de entusiasmo e conhecimentos.
Em Leiria e Boa Vista: ação-apostolado
No Seminário de Leiria, de 1931 a 1940, o seu saber, alegria, dedicação aos alunos, amor ao sacerdócio e ao apostolado, eram contagiantes. Era amigo dos seus alunos. A todos dava a mão, sendo tolerante, compreensivo e exigente. Animado pelos conhecimentos da física e química, lançou-se na organização de um laboratório, que estava aberto também aos alunos de outras escolas da cidade. Paladino da comunicação, pôs no ar a sua rádio que, com graça, rotulou de “Rádio Esfola Gatos”! De Roma, trouxe consigo uma máquina fotográfica. Com ela, guindou-se a fotógrafo do Santuário, elaborando um pequeno album intulado “Vistas de Fátima”.
As paredes do Seminário não podiam enclausurar, dentro de si, uma pessoa que nascera para comunicar e dar-se de mil e uma maneiras! Tinha boa voz, dom de palavra e doutrina, capazes de levar os que o ouviam, a pensar duas vezes e a converter-se.
Nomeado capelão da Boa Vista, Leiria, para lá caminhava todas as semanas, quer chovesse, ventasse ou fizesse sol. Não tinha carro. Apenas uma bicicleta. Mesmo assim, chegava a tempo e horas, tantas vezes com a batina repassada pela chuva e lama dos caminhos. A caridade de algumas famílias enxugava a batina do seu bom capelão.
Na Boa Vista deu o melhor da sua vida, através de uma pastoral pensada e organizada para um povo faminto de Deus e de cultura. Fundou a Acção Católica e Conferência de S. Vicente de Paulo. Organizou a catequese e formou as catequistas através de retiros e cursos. Para as crianças, havia também récitas, magustos, amêndoas e concursos. Fomentou encontros inter-paroquiais e diocesanos. Promoveu e acarinhou as vocações sacerdotais e religiosas. A devoção ao Santíssimo Sacramento, ao Coração de Jesus e a Nossa Senhora era vivida através de tríduos preparatórios e solenizados. No silêncio do confessionário, sempre acolhedor e afável, orientava espiritualmente o seu povo, ouvindo e compreendendo os seus problemas, horas a fio. Como bom pastor, procurava não ferir as ovelhas mais débeis. Somos todos irmãos, dizia. Educou o povo para que, no fim da Eucaristia, ninguém o perturbasse, durante 15 minutos. Queria estar a sós com Deus para, a seguir se tornar disponível para todos.
Em 1940, após os devidos treinos, fez exame em Alverca e, sendo considerado apto e idóneo, recebeu a carta para pilotar aviões de turismo. Válida em Portugal e na Itália.
De novo em Roma: doação-serviço
Em Maio de 1940, o bispo D. José Alves Correia da Silva mandou-o novamente para Roma. Foi de comboio. A Europa estava em guerra. Hitler e Mussolini faziam distúrbios em Roma. Não era risonho o cenário que o esperava. Na casa paterna, encostado à porta do seu quarto, desabafava: “Para que uma mãe criou um filho!”. Nomeado Vice-Reitor do Colégio Pontifício Português, em breve passou a Reitor. Aqui e durante a guerra, correndo o risco da própria vida, acolheu muitos refugiados, políticos e civis, fascistas, antifascistas, judeus e não judeus. Nunca foi molestado, mesmo quando saía de Roma para as aldeias vizinhas à procura de alimentos. Furtando-se à vigilância dos soldados nazis, lá ia, estrada fora, no carro do Colégio, mendigando milho e outros mimos para os seus refugiados. “Se não conhecesse tantos moleiros nos arredores de Roma, os meus hóspedes teriam passado muita fome! O milho, cozido em grão, valia por bom bife! Era a Providência e a Mãe de Fátima que me acompanhavam”, dizia, sorrindo, anos depois. Medos!? Muitos. Confiava. Era preciso e urgente fazer o bem sem olhar a quem.
Dispensado dos afazeres do Colégio, retirou-se para a Casa Madonna di Fátima, das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição. Daqui, fazia caminho para a Embaixada de Portugal junto da Santa Sé, onde era Consultor Eclesiástico. Fiel cumpridor dos seus deveres, por todos era apreciado pela sua inteligência, bondade, desprendimento, hospitalidade e alegria. Acompanhou missões diplomáticas. Recebeu e acompanhou a visita da Imagem Peregrina a Roma. Pregou, viveu e difundiu a Mensagem de Fátima. Era, na verdade, um doido por Nossa Senhora. Incutia a todos o amor por ela. Quando dela falava, o seu rosto transformava-se e os olhos brilhavam de alegria e entusiasmo. Escreveu 5 livros. No seu estilo próprio, escrevia com clareza, verticalidade e simplicidade. Deixar-se ler por todos e que todos o entendessem, era a sua preocupação. Na Capela da Casa Madonna de Fátima, prestava serviços sacerdotais, como bom pastor zeloso, atento e disponível.
A morte e trasladação
Tinha apenas 73 anos de idade, quando faleceu, em Roma, a 7 de Dezembro de 1981, em ambiente de simplicidade e pobreza franciscana, como era o seu viver. Nada fazia prever este súbito desenlace. No entanto, Monsenhor Carreira, como era conhecido desde que recebera este título eclesiástico, preparou, com muita antecedência, a sua viagem para a casa do Pai, como podemos ler nas cartas que escreveu. À Mãe do Céu pedia que o levasse para Deus, em dia de festa ou solenidade Sua. Assim aconteceu. Ficou sepultado no cemitério em Roma. Em 2001, os seus restos mortais foram trasladados para o cemitério dos Soutos-Caranguejeira, sua terra natal.