Outubro é o Mês Internacional de Prevenção do Cancro da Mama e o dia 30 especialmente dedicado a esta causa, com um fim de semana marcado por muitas iniciativas de sensibilização e um peditório nacional para a luta contra o cancro. A este propósito, entrevistámos a médica Sandra Hilário e recolhemos testemunhos da voluntária Rosa Paz, do ex-doente Artur Reis e do capelão hospitalar Pedro Viva, procurando sinais da ajuda que a fé pode dar na vivência e cura da doença oncológica.
Entrevista à cirurgiã Sandra Hilário
“A fé pode constituir um ganho imunitário”
Sandra Hilário Pires, nascida em Bragança há 41 anos, licenciou-se em Medicina pela Universidade de Lisboa em 1998 e é especialista em Cirurgia Geral desde 2007. Casada e mãe de três filhos (11, 7 e 4 anos), exerce atualmente no Hospital de Santo André. Desde os tempos de infância e juventude, em que foi coralista e salmista na paróquia natal, a fé acompanhou o seu crescimento e mantém-se viva, na comunidade da Cruz da Areia. Também por isso, sempre ligou a sua atividade profissional à vertente solidária e ao voluntariado médico.
Quisemos saber como encara o seu trabalho médico, nomeadamente nos casos de doença oncológica, e como a sua vida pessoal e espiritual condiciona ou não esse exercício profissional.
Ter ou não ter fé faz alguma diferença para o desempenho da medicina?
Sim, faz diferença, porque permite fomentar a fé também no próximo e lidar melhor com a doença, sobretudo quando a ciência já pouco tem para oferecer.
Na área concreta da oncologia, a comunicação da doença é um momento traumático física e psicologicamente. O facto de ser crente influencia a forma como o faz?
Influencia bastante. A comunicação da doença oncológica não é só difícil para o doente, mas também para o médico. Além de comunicarmos a existência de uma doença crónica, maligna e por vezes fatal, também temos de transmitir esperança e capacidade de tratamento.
A minha fé inspira-me nas palavras escolhidas e no “olhar nos olhos” com que tento chamar os doentes para a caminhada conjunta. Acredito, apesar da minha objetividade e focagem científica, que a cirurgia, a quimio ou a radioterapia isoladas não explicam todos os resultados alcançados. A fé do doente pode constituir um ganho imunitário extra. Se o médico puder estimular essa luz, porque também é crente, tanto melhor.
Que informação considera importante dar?
Nunca dou informação errada, mesmo quando os familiares preferem essa atitude com receio do “ele não vai aguentar”… É importante ir dando informação à velocidade que o doente vai pedindo. Há casos em que a designação “maligna” é omitida porque o próprio se “defende” e prefere não saber. Mas é sempre importante dizer que é uma doença grave, que obriga a tratamento multidisciplinar, a um seguimento frequente, mas que não está sozinho.
E quando há pouca probabilidade de cura?
Nos casos de doença maligna avançada com pouca probabilidade de cura, o momento de transmitir a informação é de facto muito difícil, não só pelo conteúdo mas também pelo fator tempo. Infelizmente, temos consultas com horas marcadas e esta conversa não pode ter “pressas”. Há doentes, sobretudo os mais novos, que perguntam diretamente quanto tempo de vida ainda têm. Nunca faço estimativas, mas não escondo se a probabilidade de cura já estiver ultrapassada, pois considero ser opção e direito do doente poder resolver situações pendentes nesta vida terrena e fazer coisas que gostava e queria antes de partir. Conheço pessoas que casam, viajam, se aproximam de filhos distantes ou perdoam a familiares com quem não falavam. O mais importante é transmitir que se deve ter sempre fé e esperança, viver um dia de cada vez, o melhor possível, e que nós estamos cá para ajudar.
E a reação dos doentes é diferente quando têm fé?
Sim. Obviamente, a palavra cancro acompanha-se sempre de uma enorme tristeza, desânimo e medo. Mas nas pessoas sem fé nota-se maior revolta e desânimo… desespero, até.
Ainda prevalece a imagem do cancro como “beco sem saída”?
Essa é globalmente a imagem do primeiro contacto com a doença. No entanto, é preocupação nossa, desde o primeiro minuto, tentar desmistificar, esclarecer e mostrar os caminhos de que dispomos para lutar contra o cancro.
Como avalia a eficácia da oferta clínica em Portugal?
Em geral, a resposta terapêutica é muito boa e até de excelência. Portugal tem profissionais de saúde de grande mérito e com capacidade técnica muito elevada, o que possibilita um tratamento ao nível das melhores e mais recentes normas internacionais; saliente-se, de forma maioritariamente gratuita.
Há resposta da cirurgia em tempo útil?
Nem sempre é fácil, dado o volume de doentes exceder a disponibilidade horária dos profissionais. Muitos cirurgiões gerais são remetidos para os serviços de urgência dentro do seu horário normal, o que prejudica os tempos de espera. Felizmente, na área oncológica é um pouco diferente, pois a prioridade natural desta doença canaliza todos os nossos esforços para operar em tempo útil, cumprindo a decisão terapêutica.
Como reage quando, ao operar, verifica que o estado do doente é muito pior do que o diagnosticado?
Fico triste, mas de imediato começo a reorganizar mentalmente as opções terapêuticas. Por vezes, é necessário alterar-se a estratégia inicial e usar os vários métodos de tratamento para aumentar a sobrevida do doente. Procuro, depois, explicar-lhe a nova situação clínica, mas sempre transmitindo fé e mantendo aberta a porta da esperança. O importante é o doente perceber que não desistimos de o ajudar, mesmo que já só possamos oferecer o controlo da dor ou medidas de conforto.
Acha que os serviços médicos ajudam a essa perspectiva de “esperança”, nomeadamente, potenciando o papel da espiritualidade na cura?
Depende, em primeiro lugar, de o doente ser crente ou não. Depois, de o médico acreditar ou não na importância da espiritualidade para a cura, ou, pelo menos, ser permeável a outras “armas terapêuticas” além da medicina.
Pessoalmente, nunca travei a esperança num doente, mesmo em fases avançadas da doença. Embora informando a gravidade da situação, alento sempre a fé e não desencorajo a sua luta. Penso que a espiritualidade permite uma vivência diferente da doença e uma melhor qualidade de vida, também para os familiares.
Trabalhando diariamente com tantas vidas marcadas pela dor, desespero e até revolta, onde vai buscar forças para a sua própria resistência?
Não é fácil, mas com o passar dos anos vamos aprendendo a lidar um pouco melhor com a situação. Talvez a nossa força venha do próprio doente… de termos consciência de que precisa de nós. Se eu cruzar os braços em desânimo, como vou conseguir transmitir-lhe esperança e fé? Obviamente, é importante estar bem comigo mesma e com a minha família, mas acredito que Deus também guia e fortifica as minhas atitudes.
Falou em família… até que ponto os problemas dos doentes interferem na sua vida pessoal e familiar?
Essa é a parte mais difícil! É uma atividade profissional que interfere bastante com a minha vida pessoal e, consequentemente, familiar. Tento deixar os problemas no hospital, mas é impossível. Mesmo sem os partilhar, o humor, a atenção e a paciência são diferentes… e há dias menos felizes.
Tento não me resignar, pois quando escolhi ser mãe já tinha enveredado pela vida cirúrgica e sempre entendi ser possível conjugar as duas vertentes. Sei que os meus filhos têm direito a uma mãe presente e feliz; mesmo vivendo as preocupações com os doentes, sou feliz ao ser médica e cirurgiã, pelo que o somatório é forçosamente positivo.
E com a sua vida espiritual e religiosa… todo esse mundo doença e sofrimento não a faz colocar em causa a fé em Deus?
De facto, não sou imune a repensar a minha fé e a minha confiança em Deus, quando me cruzo com vidas de grande sofrimento, tristeza e isolamento, que cronicamente dão cambalhotas no mesmo sentido… o da dor. Mas, simultaneamente, sinto necessidade de continuar a alimentar essa fé.
Como médica e mulher de fé, qual o sentido que encontra para a doença, o sofrimento e a morte?
A doença resulta do desequilíbrio de uma balança imunológica que, quando não se harmoniza, culmina em dor, sofrimento e morte. Talvez a doença ou o sofrimento constituam, por vezes, o ponto de maior aproximação a Deus, pois obrigam a pessoa a repensar os seus valores e prioridades. Funcionará como uma aprendizagem, uma escola de fé imbuída no Espírito Santo…
Termino pedindo-lhe que complete a frase: “Deus é…”
… Luz, Esperança, Inspiração e Porto de Abrigo.
O “sorridente” Artur Reis
“Não tenho dúvidas…”
É um sorriso rasgado e um cumprimento caloroso que nos acolhe no quiosque onde trabalha. A mesma atitude vai sendo dispensada aos vários clientes que vai atendendo nos intervalos da nossa conversa. Artur Reis, natural do Souto da Carpalhosa e residente nos Marrazes, ouviu aos 45 anos a pior das notícias: tinha um Linfoma de Hodgkin.
“Tudo começou com uma dor no braço, com os primeiros exames a não detectarem nada de especial”, revela. A insistência de um médico amigo levou-o ao hospital para tirar um quisto, “uma coisa de cinco minutos que acabou por demorar duas horas”. Poucos dias depois recebia “de chofre” a comunicação de que “ou começava já o tratamento, ou não durava mais de três a quatro meses”.
Reagiu com calma, mas o pior era como contar à esposa e às duas filhas. Acabou por ser ele a transmitir-lhes mais confiança e o processo de quimioterapia que se seguiu “foi vivido em família”. Apesar de muito doloroso e violento, o tratamento permitia, de três em três semanas, “uns passeios para manter a atividade e o contacto com os amigos”. Estes admiravam sempre a “descontração” e a boa disposição com que lidava com a situação.
Qual o segredo? Artur repete várias vezes o “não tenho dúvidas”. Se tivesse sido uns anos antes, a história seria, com toda a certeza, bem diferente: “Era um homem triste e enfadado, não teria forças para resistir a uma provação destas, mas um Curso de Cristandade feito em 1993 mudou radicalmente a minha vida; foi o clique para descobrir Deus e a alegria de viver”. Assim, mesmo nos momentos de dor intensa, em que só a rastejar conseguia mover-se, sempre acreditou que Deus iria ajudá-lo e retomava a esperança.
Sete meses depois da cirurgia e da quimioterapia em Leiria e da radioterapia em Lisboa, veio a notícia boa da cura. “Tudo o que me aconteceu de bom, todas as pessoas, tratamentos possíveis e coincidências felizes foram a ajuda que Deus me quis dar”, conclui. Por isso, hoje com 60 anos, sabe que ficou com mazelas da doença, mas também com um novo lema de vida: “viver ao máximo e com alegria cada dia que Deus me dá para aproveitar”. Porque, tal como a cura, a sua alegria é uma graça de Deus. “não tenho dúvidas”!
Testemunho do capelão hospitalar
A fé como terapia
No tratamento da dor, encontramos várias terapias possíveis: a farmacológica, a cirúrgica, a psicológica, a psicoterapia, a hipnose, a acupunctura… e podemos também falar da fé cristã como uma verdadeira terapia. Não é uma questão de sugestão, até porque existem estudos que demonstram uma recuperação mais rápida de doentes por quem se rezou sem que eles o soubessem, do que outros com a mesma patologia e por quem não se rezou. A fé do paciente, aliada à fé dos familiares, amigos e de toda uma comunidade proporciona uma comunhão que é salutar. Pior do que sofrer é sofrer só. A fé, precisamente, ajuda a pessoa a sentir-se em comunhão com Deus, com os santos (a quem se pede intercessão), a esperar um milagre (particularmente se a doença é grave e incurável). Mas o maior milagre é a confiança que produz a paz: “estou nas mãos de Deus”, e estas são as melhores mãos.
Direi que o ideal no tratamento da dor é conjugar todas estas terapias. A pessoa é um mosaico complexo. A dor não é apenas física e, como tal, deve ser abordada de forma multidisciplinar. Em todo este processo, o relacionamento humano é fundamental, como afirma Patrick Verspieren: “Quando uma terapia analgésica (…) se desenvolve num clima de atenção, de escuta serena, de presença próxima do doente, na maioria das vezes o doente acalma e a dor desaparece”. É o chamado efeito antiálgico do relacionamento humano.
A fé leva à esperança. E ambas nos ajudam a caminhar. A este itinerário, a esta resposta humana de ir para além da matéria damos o nome de espiritualidade. Um horizonte metafísico (pode não ser religioso) que ajuda a pessoa a dar sentido à vida e à morte. A fazer da sua vida algo de bom e belo, como cantava Camões: “por obras valerosas se vão da lei da morte libertando”.
A espiritualidade cristã vai mais longe. Não é uma moral, um código de ética, uma técnica de meditação, uma filosofia de vida. É uma relação com Deus, que sabemos que nos ama e salva, através de seu Filho Jesus que morreu por nós e ressuscitou.
A doença oncológica é, provavelmente, a que mais faz sofrer: o doente e a família. Particularmente, o estágio final da doença é penoso. Daí que se fale hoje em cuidados paliativos, para cuidar da pessoa com a máxima dignidade possível até ao fim. É como que colocar um “palio” sobre o doente, que se torna objecto de toda a atenção. Neste cuidado multidisciplinar ao doente e à família, o capelão hospitalar pode ter um papel de suporte extraordinário. É o confidente, o irmão, o conselheiro, o portador da esperança para quem parte e para quem fica.
P. Pedro Viva
Movimento Vencer e Viver
“As pessoas com fé têm, por norma,
um grau de esperança maior”
O Movimento Vencer e Viver (MVV) teve origem nos EUA, em 1953, quando Teresa Lasser começou a visitar mulheres com cancro da mama para as motivar a partir da sua própria experiência de cura. Em Portugal, é dinamizado pela Liga Portuguesa Contra o Cancro (LPCC) desde 1981, como movimento de entreajuda baseado no voluntariado de quem já passou por esta doença. Trabalha na sensibilização para a prevenção e detecção precoce, bem como no apoio emocional e psicológico às doentes, familiares e amigos, desde o momento do diagnóstico, ao processo de tratamento e à promoção da qualidade de vida após a cura. Em parceria com diversas instituições, entre as quais os hospitais, tem alargado a sua ação, por exemplo, à oferta de próteses e outros materiais de apoio ao tratamento e recuperação. O MVV está também presente do Hospital de Santo André, desde 2001, contando com uma equipa de 13 voluntárias.
Em Leiria existe ainda o Grupo de Voluntariado Comunitário da LPCC, que desenvolve ações de sensibilização para a prevenção do cancro e educação para a saúde, referenciação de doentes oncológicos com dificuldades socioeconómicas e angariação de fundos. Segundo Sónia Silva, responsável da Unidade de Voluntariado do Núcleo Regional do Centro, a LPCC pretende abrir aqui uma delegação distrital no próximo ano, visando “maior descentralização de serviços e aproximação à população”.
Rosa Paz, de 71 anos, é natural da Figueira da Foz e residente nas Cortes. Casada e com dois filhos, ultrapassou há 20 anos um cancro da mama. Atribui parte do sucesso ao apoio recebido do MVV, pelo que não hesitou dizer sim ao convite para integrar a equipa de voluntariado, quando o movimento chegou ao Hospital de Santo André. “Estava no início da aposentação; era uma maneira de me ajudar a ocupar algum tempo e ajudar os outros pela partilha da minha experiência”, diz a atual responsável por esta extensão.
Confessa-se uma mulher de fé, mesmo “sem frequentar muito”, e reconhece que é nas alturas de aflição que “pensamos mais em Deus e pedimos a sua ajuda”. Certo é que não se esquece também de agradecer, pois acredita que “o pensamento positivo e a ajuda de Deus foram essenciais para ultrapassar a doença”.
Quando começou a acompanhar outras pessoas com o mesmo problema, sentiu que essa era a melhor ajuda, “o apoio emocional, a oferta de algum conforto e o partilhar a importância que tem mantermos sempre a esperança”.
Não costuma falar de fé, “a não ser que seja a pessoa a puxar o assunto, pois é do foro mais íntimo”. Considera que não é uma fonte exclusiva de esperança, recordando o caso de uma amiga descrente que teve “uma força enorme e uma confiança inabalável” na cura que veio a verificar-se. Mas concorda que “as pessoas com fé têm, por norma, um grau de esperança maior” e “são muitas as que afirmam que se curaram graças a Deus.
A esse propósito, lembra o testemunho de uma outra amiga, voluntária do movimento, que veio a falecer vítima de cancro: “Visitei-a nos cuidados paliativos em Coimbra e impressionou-me o modo como suportava o sofrimento e aceitava a perspectiva da morte, sempre com referência a Deus confiança n’Ele; era uma senhora especial”.