Nalguns pacotes que a vida vai embrulhando, às vezes, é preciso remexer… Oh! Surpresa! Sai um “papelito”, já roído da traça, em escrita gótica, à maneira clássica, rabiscado com caneta adrede. Data de 1958 e dia da Imaculada Conceição, de um 4.º ano de Seminário cheio de perspetivas e sonhos na arte musical.
A propósito desta descoberta, surgiu o convite a escrever algo mais sobre o tema da música litúrgica na Diocese. Sem pretensões de fazer essa história, que exigiria investigação e método, partilho apenas algumas memórias de tipo pessoal, dispersas pelo tempo e que ainda bailam no subconsciente.
Infância e tempo de Seminário
Terra abundante em seminaristas e sacerdotes, na quase totalidade propensos à música, Alburitel primou sempre por alguma inovação, sobretudo na linha da polifonia, não fora o caso de tantos “mestres” por ali terem passado. Esta é uma memória de infância, das boas vontades e belas vozes, algumas das quais ainda brilham pelo timbre agudo e acutilante, nas celebrações da aldeia. Era mais aprimorado pelas solenes festas de verão, mas presente em devoções como o Terço e a bênção aos domingos à tarde, as vias-sacras, etc. Eram utilizados os cânticos tradicionais, que os devocionários prescreviam e às vezes transcreviam.
Veio, depois, o tempo de Seminário, já com formação na arte. Os primeiros laivos com o padre Henriques e, depois, com o padre Gregório, regressado de Roma em 1956, formado em órgão e primeiro organista titular do Santuário de Fátima, que primava por alguma dureza incontida no ensino do solfejo a garotos meio rudes. “É como quem ‘abreja’ azeitona” – expressão de fúria desabrida para desafinações inconscientes, enquanto a vara saltava forte na cabeça. Um gregoriano mal amanhado por adolescentes imberbes, íamos cantar à Basílica nas festas principais, lá em cima na galeria, várias vezes em conjunto com os seminaristas da Consolata ou do Verbo Divino.
Nas peregrinações dos dias 13, era sempre a já consagrada Schola Cantorum do Seminário de Leiria, primeiramente dirigida pelo padre João Pereira Venâncio (depois, Bispo da Diocese) e, suponho que desde 1955, pelo padre Carlos Silva, que fez estudos musicais em Roma. Recordo, em 1957, a Missa de Casciolini para as exéquias do Bispo D. José e, em 1958, na morte de Pio XII. E as grandes festas de Natal, gregoriano por base, mas Perosi, Bartolucci, Palestrina e outros, a solenizar responsórios da Liturgia das Horas. E a Semana Santa? Até dava direito a “gemadas com café” e vinho do Porto! Era duro! Aqueles nove responsórios de Martini, de Tomas de Vitoria e outros… era um regalo ouvi-los e executá-los. E aquele concerto majestoso nas Comemorações Henriquinas (finais de 1950, início de 1960), juntamente com os franciscanos do Convento da Portela? E o “Senhora, nós vos louvamos”, num 13 de maio, em Fátima? Foram marcos extraordinários de vivência musical litúrgica nesta Diocese de Leiria.
Tudo culminou com a visita do Papa Paulo VI a Fátima, em 1967, onde se destacou o Hino do Cinquentenário das Aparições, outro “papelito” que ainda anda por aí.
Concílio Vaticano II
Com o Concílio, começou outra etapa… de confusão, de pesquisa, de inovação… como a Semana Santa em língua portuguesa, no ano de 1964. “A vinha do Senhor”, “Como o veado anseia”, “Fiel e justo”, etc., foram composições gizadas para a ocasião. E tudo foi entrando: composições daqui e dali, conhecidas e desconhecidas, adaptações de espirituais negros, traduções de Manzano, Erdozan, Spinosa, Gelineau, David Julien, L. Deiss e, mesmo, umas popularuchas brasileiras, padre Zezinho incluído, tudo entrava! Tudo fazia sucesso!
Mas começaram também a emergir os compositores nacionais, que depois vieram a afirmar-se como contributos magistrais para uma música litúrgica digna desse nome, autênticos garantes duma ortodoxia clara e aberta neste domínio. Os Encontros Nacionais de Pastoral Litúrgica (são já 43) são disso um manancial inesgotável. Pouco a pouco, foi-se solidificando o cânon de músicas para a liturgia, embora, em muitos casos, não se aproveite devidamente e continuem a persistir algumas “aberrações” dos anos 60/70. É bom recordar que música litúrgica é a composta para este fim específico, com textos que lhe são próprios e não umas “cantiguinhas”.
A história da música no Seminário foi o índice mais alto, mais marcante da música litúrgica na Diocese. Se Alburitel, Arrabal, Freixianda, Maceira, Batalha, Mira de Aire – e muitas outras paróquias, com certeza – se davam ao luxo de nunca permitirem que fosse a Banda Filarmónica a cantar nas Missas das festas, é porque seminaristas preparavam a Missa Brevis de M. Faria, Perosi ou outros reconhecidos, em uníssono ou em polifonia.
Não se pode, também, esquecer o contributo do Santuário de Fátima, sobretudo com a influência de Carlos Silva, cuja história está por fazer.
Publicações
“O chapiógrafo” – nome pomposo para uma massa consistente, tipo gelatina, em tabuleiro de alumínio, aparos a condizer e tinta ectográfica – fazia maravilhas na reprodução de cópias. Era só chapar na massa o original com a tal tinta e, depois, folha a folha, até a tinta se esgotar. Lavava-se a massa com água quente, secava e ficava pronta para novas utilizações, até se gastar.
Depois, vem o luxo do “stencil”. Reproduções infindas, cópias e mais cópias. Que belo e primitivo repositório do que a música litúrgica de então permitia, gregoriano em primeiro, e já com umas aquisições da música para a liturgia em português!
Do que conheço, para além de milhares de cópias manuais, surgiu no Seminário o “Música e Vida”, em quatro volumes preparados pelo Secretariado de Catequese, que depois editou o já gasto, mas útil, “Assembleia Viva”.
Por ocasião do cinquentenário das Aparições de Fátima e da restauração da Diocese (1967/1968), o padre Carlos Silva selecionou e a Gráfica de Leiria editou um “Cantoral” para a Missão que então se realizou. E não serão de esquecer os cadernos que este padre organizou para os diversos tempos litúrgicos e os guiões das semanas de Formação Permanente do Clero. Muitos outros foram, entretanto, surgindo, a nível nacional, a tentar reunir o que de mais necessário existia para as celebrações, quantas vezes com poucos critérios de valor e oportunidade litúrgica.
Na Diocese, surgiu, há cerca de 15 anos, o “Laudate”, livro que, embora originado para as comunidades de emigração na Alemanha e na Suíça, junta uma vasta seleção de músicas para a liturgia e para outras ocasiões, largamente difundido e usado por muitos corais. Estando esgotada a edição impressa, está disponível na internet (cânticos.org), com letras, pautas e ferramentas diversas.
O Secretariado Nacional de Liturgia, em boa hora, deu-se ao trabalho de publicar abundante material e tem atualmente em finalização um “Cantoral Nacional”, que visa reunir o que de melhor se produziu em Portugal nesta área.
A música litúrgica é séria demais para se deixar ao improviso e a escolhas dúbias de sentido e oportunidade… oxalá se vá acertando no bom caminho!
E o “papelito”?
Voltemos ao “papelito” (ver pauta original e transcrição). Trata-se da partitura do Hino da Restauração da Diocese de Leiria, dum tal P. Sabino (aí pelos anos 20). Tem atualidade, porque é um marco histórico da entrada do senhor D. José. Recordo-o, porque o utilizámos, suponho, na entrada do senhor D. João, razão pela qual ele ainda por aqui andava na amálgama dos embrulhos de antanho. E mais não sei sobre ele. Pesquisadores… a missão é vossa!
Será que alguém aceita o desafio de fazer uma verdadeira história da música na Diocese de Leiria de há 100 anos a esta parte? Talvez haja muito a pesquisar, para desenterrar do esquecimento das bibliotecas e arquivos o que foi uma verdadeira cultura musical litúrgica que o Seminário incentivou e construiu. Bem como o Santuário de Fátima. Muito terá a dizer sobre este assunto, porque grande parte das vezes a influência das duas entidades se confundia… Oxalá a esperança não nos desiluda.
P. Artur Oliveira
Ver mais artigos da rubrica “100 anos – Figuras & Factos”