Nas várias selecções e adaptações das fábulas de Esopo que tive à mão, em nenhuma encontrei aquela que fez as minhas delícias de estudante de grego, vai para muitos anos: quando essa disciplina fazia parte do curso de humanidades, que, no meu Seminário, precedia os estudos filosóficos e teológicos.
Analisámos outras fábulas e outros textos muito mais difíceis, de Homero a São João Crisóstomo; autor este, do qual todos aprendíamos de cor os primeiros parágrafos do discurso pronunciado quando acolheu na catedral de Constantinopla o valido da imperatriz Eudóxia, à sombra de um privilégio que o mesmo ministro caído em desgraça, antes quisera abolir.
Começava esse discurso, homilia ou sermão, citando as palavras do versículo segundo, capítulo primeiro, do Eclesiastes (Qohélet, como se diz agora): “vaidade das vaidades, tudo é vaidade”, na tradução portuguesa, que, além de não ter a beleza formal do grego original, não atinge a sua profundidade.
Voltando a Esopo e às suas “fabulas”, de todas as que estudámos, ficou-me especialmente gravada na memória, aquela que fala do homem que carrega com dois sacos, um de frente, outro às costas – assim como um alforge – o primeiro contendo as suas qualidades, o segundo os defeitos, que acabava por não ver, entretido como andava a mirar as qualidades.
Delicioso aquele “anêr tis”/”homo quidem”… “uma certa pessoa”!
O seu conteúdo, ouvi-o alguns anos mais tarde, traduzir desta maneira: o maior negócio do mundo que poderíamos fazer, seria comprarmo-nos pelo preço que os outros nos atribuem e vendermo-nos depois, pelo preço que nós próprios nos atribuímos.
Estava-se no contexto de uma pregação sobre a virtude da humildade, e queria o nosso mestre fazer-nos entender que, entre as virtudes humanas, esta seria a que melhor serviço prestaria à descoberta da verdade de cada um de nós.
Pensando bem, continuava-se a caracterizar a humildade como algo desprestigiante, uma virtude que parecia não ter objectivos práticos, positivos: comparar virtudes e defeitos, sempre a partir de nós, como sugeria já o fabulista grego, nunca foi caminho para o conhecimento da verdade do homem, e muito menos para se ter uma noção correcta do que cada um vale.
E esse será sempre o maior erro do juízo do homem a respeito do próprio homem, porque, partindo dele, sem valores absolutos, transcendentes, tudo é relativo e julgado no quadro de interesses particulares ou ideológicos.
Não será preciso gastar muito tempo nem fazer grandes esforços para perceber que, por exemplo, quando a noção geral de pecado assenta em conceitos exclusivamente morais, não só se esvazia de sentido, mas deturpa a fé comum, em aspectos essenciais da existência cristã:
De facto, como se entenderiam os discursos evangélicos sobre a misericórdia divina, a graça e o perdão? O perdão de Deus aos homens e dos homens uns aos outros, se admitíssemos sequer a hipótese de haver alguém totalmente isento de pecado?
Será por isso que não se conhece qualquer declaração autêntica de santos reconhecidos como tais pela Igreja, que afirme, ou mesmo só dê a entender que não é pecador.
Por vezes, comete-se o erro de os considerar mentirosos, porque levando à conta de humildade o que nos dizem sobre a sua condição de pecadores, estamos a pensar que fingem, nem sempre com recta intenção.
Seria aquilo que também ouvi um dia classificar de “humildade de anzol”: uma forma larvar de busca de elogios, procurando que os outros vejam e apreciem melhor algumas das nossas qualidades que nos parece estarem demasiado escondidas.
De facto, o que ilumina a mente dos santos e dos místicos – adultos, jovens e crianças (sim, crianças, como os pequenos Francisco e Jacinta Marto), – o que ilumina as suas mentes é a fé; uma fé impregnada de uma paixão profunda por Jesus Cristo.
Tenho para mim que, na medida em que nos deixarmos iluminar assim, veremos melhor o que os nossos olhos têm tanta dificuldade em descobrir.
E, o que neste momento me parece particularmente importante, irão desaparecendo os problemas que tanta gente tem em perceber do Pai-nosso, sobretudo as súplicas finais, mesmo com a tradução deficiente de que dispomos:
“Perdoai-nos as nossas ofensas/como nós perdoamos a auem nos tem ofendido; não nos deixeis cair em tentação; mas livrai-nos do mal.”
E veremos também como tem sentido rezar esta oração, a única que Jesus ensinou aos discípulos, uma e muitas vezes, por vivos e defuntos: porque todos estamos incluídos naquele “nós”, dos que tomam a Deus por Pai.