“Abraão insistiu novamente: «Que o meu Senhor não se irrite; não falarei, porém, mais do que esta vez. Talvez lá não se encontrem senão dez.» E Deus respondeu: «Em atenção a esses dez justos, não a destruirei.»
Terminada esta conversa com Abraão, o SENHOR afastou-se, e Abraão voltou para a sua morada” (Gen 18, 32-33).
Parte final de um episódio bíblico que tem despertado a atenção de gerações inteiras, desde a sua pré-história aos nossos dias: pelo encanto, diria mesmo, a ternura desta conversa de Deus com Abraão, e pela riqueza teológica do seu conteúdo.
Na generalidade dos Padres da Igreja, os exegetas e os teólogos que se debruçaram sobre esta narrativa, todos viram nela uma mensagem divina sobre o papel do justo na salvação dos pecadores, como intercessor e, na profundidade da revelação, como verdadeiro redentor: figuras evidentes de Jesus Cristo, segundo a fé do cristão, proclamada de modo explícito por São Paulo.
Muitas das questões levantadas por este episódio dependem da perspectiva que se adopta, quando se faz a sua leitura.
A utilização mais frequente nas catequeses da Igreja, de tão belo diálogo entre Deus e Abraão, vai no sentido de realçar tanto a misericórdia divina, como a eficácia da oração de intercessão, sobretudo quando se rata de pedir essa misericórdia, em favor das pessoas envolvidas em especiais perigos, resultantes da corrupção moral ou política.
Utilização, a meu ver correcta, aliás com o apoio da tradição, mas que talvez não abranja todo o mistério revelado neste passo do texto sagrado.
Muita gente se pergunta que teria acontecido se a súplica de Abraão continuasse até não se encontrar mais do que um justo nas cidades em questão.
Quanto a mim, a resposta não será muito difícil, se tivermos em conta que, no fundo, como entendem certos exegetas, do que se trata, em todo o episódio, é de uma metáfora, mais uma, do mundo pecador, sobre o qual o Filho pede a misericórdia do Pai: “Pai, perdoa-lhes porque eles não sabem o que fazem”.
Afinal, há apenas um justo, que é Jesus Cristo.
Mas acontece que uma metáfora é uma comparação, e todas as comparações são imperfeitas.
É por isso que, regressando ao nível mais directo da narrativa e salvaguardando tudo o que de misterioso encerra o emprego, por parte de Deus, da linguagem humana, penso que, como acontece em não poucos outros casos, também no de Abraão nos não defendemos suficientemente do vício de transformar as figuras bíblicas em estereótipos de certos temas de pregação.
Com isso nos ficam às vezes aspectos importantes que, bem analisados, poderiam ao menos ilustrar aquilo que em nós arrisca sempre a eficácia do modelo.
Leiamos mais uma vez o texto que, na edição que utilizo abrange nada menos que dez versículos do capítulo dezoito do livro do Génesis:
“Abraão aproximou-se e disse: «E será que vais exterminar, ao mesmo tempo, o justo com o culpado? Talvez haja cinquenta justos na cidade; matá-los-ás a todos? Não perdoarás à cidade, por causa dos cinquenta justos que nela podem existir? Longe de ti proceder assim e matar o justo com o culpado, tratando-os da mesma maneira! Longe de ti! O juiz de toda a Terra não fará justiça?»
O SENHOR disse: «Se encontrar em Sodoma cinquenta justos perdoarei a toda a cidade, por causa deles.» Abraão prosseguiu: «Pois que me atrevi a falar ao meu Senhor, eu que sou apenas cinza e pó, continuarei. Se, por acaso, para cinquenta justos faltarem cinco, destruirás toda a cidade, por causa desses cinco homens?» O SENHOR respondeu: «Não a destruirei, se lá encontrar quarenta e cinco justos.» Abraão insistiu ainda e disse: «Talvez não se encontrem nela mais de quarenta.» O SENHOR disse: «Não destruirei a cidade, em atenção a esses quarenta.» Abraão voltou a dizer: «Que o Senhor não se irrite, por eu continuar a insistir. Talvez lá se encontrem trinta justos.» O SENHOR respondeu: «Se lá encontrar trinta justos, não o farei.» Abraão prosseguiu: «Perdoa, meu Senhor, a ousadia que tenho de te falar. Talvez não se encontrem lá mais de vinte justos.» O SENHOR disse: «Em atenção a esses vinte justos, não a destruirei.» Abraão insistiu novamente: «Que o meu Senhor não se irrite; não falarei, porém, mais do que esta vez. Talvez lá não se encontrem senão dez.» E Deus respondeu: «Em atenção a esses dez justos, não a destruirei.»
Terminada esta conversa com Abraão, o SENHOR afastou-se, e Abraão voltou para a sua morada” (Gen 18, 23-34).
Abraão, figura única do crente, a muitos títulos nosso verdadeiro pai na fé e considerado por muitos milhões de pessoas, raiz e tronco da sua ascendência étnica… em diálogo íntimo com o Senhor Deus.
Em meu entender, duas coisas faltam à perfeição da súplica que faz: a primeira é que suplica como quem reivindica, ainda que partindo dos próprios atributos de Deus. A segunda, e aqui está o mistério fundamental desta conversa tão íntima, tão terna, é que só um homem é justo, e Abraão não se identifica com ele, cuja súplica soará na montanha do Calvário: Pai, perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fazem.
Na recordação da festa do Preciosíssimo Sangue de nosso Senhor Jesus Cristo.