Nesta manhã fria de Dezembro, procurando secundar o esforço que fazem, ou precisam de fazer os crentes para não se afundarem nos ruídos com que as multidões procuram esquecer o mistério do seu próprio ser – de facto, o Natal é cada vez menos uma festa religiosa, ou tipicamente cristã -, antes de retomar as leituras da missa, pego em São João e leio:
“Tanto amou Deus o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que nele crê não se perca, mas tenha a vida eterna.
De facto, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele” (Jo 3, 16-17).
Temos aqui uma afirmação tão clara como esquecida, sobre o Deus em que acreditamos: um Deus que o Novo Testamento, noutro contexto, identifica com o Amor… amor/caridade, evidentemente, que não coincide exactamente com o que actualmente diz desta palavra, no falar comum.
O “mundo” são pessoas, todas as pessoas, de qualquer sexo, idade e condição; desde que no ventre materno se inicie um processo vital humano. E conforta-me saber que “Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele”.
Por Ele, não por outro, nem por qualquer via alternativa, que, de facto, não existe:
“Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado, por não crer no Filho Unigénito de Deus. E a condenação está nisto: a Luz veio ao mundo, e os homens preferiram as trevas à Luz, porque as suas obras eram más. De facto, quem pratica o mal odeia a Luz e não se aproxima da Luz para que as suas acções não sejam desmascaradas. Mas quem pratica a verdade aproxima-se da Luz, de modo a tornar-se claro que os seus actos são feitos segundo Deus» (Io 18-21).
A luz! Terão alguma coisa a ver com esta luz, aquelas luzes em que se gastam actualmente milhões do dinheiro dos contribuintes, com festas, músicas e discursos, onde raramente aparece o nome de Jesus?
Mas este Jesus não veio para condenar o mundo; veio para salvá-lo, o que exige dos que acreditam n’Ele um exercício permanente de compreensão, perdão e compaixão, sem os quais não há amor, nem muito menos caridade, que é já o amor divino passando pelo coração humano.
O drama está em que, desde o princípio, no começo da criação, a busca de alternativas frustradas a esse amor trouxe a desumanização que caracteriza o que hoje se chama impropriamente cultura: porque a cultura, no sentido mais profundo do termo, é precisamente o inverso do que nos propõem, na sua grande maioria, as ideologias dominantes da opinião pública mundial.
“Mas quem pratica a verdade aproxima-se da Luz, de modo a tornar-se claro que os seus actos são feitos segundo Deus”.
E estes são os que garantem que se cumpriu a promessa de Jacob a Judá: “O ceptro não se afastará de Judá, nem o bastão de comando de entre os seus pés, até que venha Aquele a quem pertence e a quem os povos hão-de obedecer”.
Aquele a quem pertence: “Tanto amou Deus o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que nele crê não se perca, mas tenha a vida eterna”.
O Filho de Deus, da descendência de David, segundo a carne, segundo a genealogia de Mateus e de acordo com a afirmação de Paulo:
“Quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob o domínio da Lei, para resgatar os que se encontravam sob o domínio da Lei, a fim de recebermos a adopção de filhos” (Gal 4, 4-5).
À luz destes e outros textos da Sagrada Escritura, mais rezados do que lidos, com a fé que devo exclusivamente à misericórdia divina, ainda que transmitida, ilustrada e animada pela fidelidade de tantos instrumentos seus, sinto que me falta orar muito mais, para que se torne menos difícil aos meus irmãos, perceber a importância deste aviso de Bento XVI, na abertura da sua primeira encíclica:
“Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (“Deus caritas est”, 1).
Há que pôr fim às tentativas de transformar a Igreja numa ONG em busca de um lugar ou uma oportunidade, como se o seu espaço não fosse o mundo todo e houvesse para ela outra oportunidade que que se lhe abriu definitivamente quando, no interior humilde de uma casinha de Nazaré, da Galileia, a norte do vale do Jordão, uma mulher respondeu, com total disponibilidade, ao convite divino, para permitir que nela se assumisse definitivamente a sua condição de mulher, “mãe dos viventes”:
“Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra”.
É um faça-se, “cumpra-se”, que dominará toda a caminhada do Filho, que o ensina aos discípulos e o leva até à cruz, junto da qual ela está de pé e ouve a proclamação do rumo que nela se abriu definitivamente.
Talvez devêssemos reservar mais tempo à oração e suplicar com mais força: “Ó Sabedoria do Altíssimo, que tudo governais com firmeza e suavidade: vinde ensinar-nos o caminho da salvação.”