É uma grande cidade. Porto fluvial, antes de mais, e cosmopolita: atravessada por povos de todas as raças, culturas e religiões. Uns por causa dos negócios, outros, talvez a maioria, em busca de melhores condições de vida.
Como em todas as grandes cidades, há ricos e pobres: estes sempre crescendo em número, enquanto os ricos diminuem e se tornam cada vez mais ricos.
É sempre assim, segundo leio em certos antropólogos recentes: em qualquer sociedade, não há riqueza que não produza pobreza e, simultaneamente, que não se alimente dela.
É pensando nisto que alguns, talvez demasiado cépticos, se perguntam, com um sorriso que imaginei sempre no rosto de Pilatos quando ouvia Jesus falar de morrer pela verdade: que sentido terá um Dia Mundial do Pobre?
Volto ao quadro da minha meditação matinal.
É uma grande cidade, perto do local onde uma depressão gigantesca terá engolido outros aglomerados populacionais, apontados pela tradição como centros cujos pecados bradavam aos céus: pecados que ainda há pouco tempo, vinham assim formulados nos nossos catecismos: homicídio voluntário, pecado sensual contra a natureza, opressão dos pobres, principalmente órfãos e viúvas, não pagar o salário a quem trabalha.
Cidades onde, como se pode concluir do diálogo com Abraão, cujo parente aí habitava, com a respectiva família, não haveria sequer dez justos (cf. Gen 19, 1-30).
Jericó, como muitas outras grandes cidades de então e de hoje, só aparentemente existe sem a humanidade que fervilha dentro dela e, de modo nenhum, lhes sobreviverá; o não repararmos nisso será a mais perigosa das nossas distrações. Distracções desumanizantes, que se tornaram pandémicas com a indústria do turismo; indústria que, transformada em artigo de mercado, se alimenta precisamente dessas distrações.
Também não podemos esquecer que o negativo do cosmopolitismo e do turismo tem o seu lado positivo; encontra-o quem não consome as coisas para se distrair, quiçá, mesmo esquecer: o turismo também pode ser consumido como um estupefaciente.
Falta ó que nos esforcemos por viajar como quem peregrina, movidos pela certeza de que, se não perdemos o último destino do homem e o que lá conduz, sempre podemos aprender muito, convivendo, respeitando, estando atentos ao que pode alegrar ou entristecer os outros. É uma pena que não preparemos senão o porta-moedas para as nossas viagens!
Dou-me com os personagens do meu quadro; naturalmente, apenas os que se podem ver e apreciar:
Começo pela multidão anónima, desenhada como se todos os seus componentes tivessem um só sentimento: rir-se de um rico que, além do mais, era malquisto pela profissão que exercia, ao serviço do poder político. E de pequena estatura; o que, por torná-lo ridículo, aumentava a sua infelicidade.
Rico, mas muito infeliz, porque nem sequer podia aproximar-se daquele que um dia, não se sabe bem como, lhe surgiu na mente como resposta para o que o inquietava.
Até que decide trepar a uma árvore, arrostando com a troça dos transeuntes, todos muito contentes pela oportunidade que ele próprio lhes oferecia de se fixarem alegremente naquilo que mais o magoava.
Acontece, porém, que é precisamente no centro deste acto corajosa humildade que se lhe abre a porta que todos fechavam.
“Quando chegou àquele local, Jesus levantou os olhos e disse-lhe: «Zaqueu, desce depressa, pois hoje tenho de ficar em tua casa.» Ele desceu imediatamente e acolheu Jesus, cheio de alegria” (Lc 19, 5-6).
O que aconteceu depois já não está desenhado no meu quadro; mas todos sabemos o que aconteceu e conhecemos a palavra final de quem pedira hospedagem ao rico que todos desprezavam com vãos pretextos:
“Hoje veio a salvação a esta casa, por este ser também filho de Abraão; pois, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19, 9).
De lamentar que se pense tão pouco no significado deste “hoje” e reparemos tão apressadamente na explicação final dada pelo protagonista principal da cena a este gesto messiânico: “o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido”.
No “hoje” do Filho do Homem está todo o mistério da Criação e da Redenção, e perdido está cada um de nós desde a queda do Paraíso… todos, sem excepção; e não seremos verdadeiramente favorecidos pelo encontro do Senhor, se não saltamos, deitando fora a capa, como o cego pedinte das ruas da grande cidade, ou subimos humildemente o sicômoro corrector da nossa pequenez, como o rico financeiro de Jericó.
Pedido estou eu, se não deixo que o Senhor entre com toda a profundidade da Sua mensagem, na curta visão dos meus projectos, na preguiça e no comodismo das instalações em que me refugio, para não ter de emendar nada, nem no meu pensar, nem no meu agir.
Deixar de me esconder no anonimato desse “agora é assim”, que, como acontecia com a multidão que acompanhava Jesus, não deixa ver os dramas humanos que, de uma maneira ou de outra, se cruzam comigo.