A notícia, com todo o cortejo de lembranças, quase tão vastas como o oceano e como ele extremamente variadas, em coordenadas temporais e geográficas, trouxe-me à memória aquele serão de finais da década de sessenta, vivido em Noidans-les-Vesoul, uma pacata cidade do Delfinado francês, donde, em dias limpos como os que passámos ali, se avistavam os contrafortes dos Alpes suíços.
Estávamos por uns dias, entre familiares e amigos, com o intuito de matar saudades e descansar fora do ambiente pesado de Paris.
A certa altura, quando a maioria das pessoas aproveitavam já a noite, curta como todas as noites de verão, restaurando as forças necessárias para as actividades do dia seguinte, decidi, fascinado pelo nome do libretista – nem o compositor nem os actores me eram familiares – aproveitar a transmissão televisiva para apreciar o drama da execução das 16 carmelitas de Compiègne, condenadas à guilhotina, em 1794, no auge do regime que a historiografia classificou de Terror.
Não recordo muita coisa do espectáculo, mas não poderei nunca esquecer o momento em que aparece Blanche de la Force, a monja fugitiva que tantos problemas havia sentido e criado no seio da comunidade, entoando a última estrofe do cântico com que as religiosas manifestavam a sua entrega, a caminho do patíbulo.
A notícia da canonização destas 16 vítimas do ódio à fé, assim adicionadas ao elenco de tantas outras – afinal, uma minoria entre os milhões, conhecidos ou não, que conta a história da fidelidade à luz que brilhou em Belém, há mais de vinte séculos – a notícia desta canonização, com o mar de lembranças que me trouxe à memória, fez-me rever e ficar longamente meditando o que me prece ser a revelação central contida nos textos desta quinta-feira: precisamente o que acabei por designar como um mistério de totalidade.
De facto, pensando bem, que será a Encarnação, vista, tanto quanto possível, a partir do interior dos seus protagonistas, se não um mistério de totalidade?
E uma totalidade que abarca o dar e receber que estão no fundo mais profundo da natureza humana e de Deus, seu Criador.
Sem nenhuma espécie de panteísmo, nem sequer aparente, Deus não encarna nem salva o homem a meias: é por isso que o “faça-se” de Maria, tem de ser acompanhado pelo que se diz de José: “despertando do sono, fez como lhe ordenou o anjo do Senhor” (Mt 1, 24).
Estamos perante o “faça-se” que Cristo ensinou aos discípulos a pedir ao Pai e Ele repete no momento de consumar a Sua entrega, na Paixão: “Pai, se quiseres, afasta de mim este cálice; contudo, não se faça a minha vontade, mas a tua” (Lc 22, 42).
Maria, que encerra em si toda a humilde grandeza da existência feminina querida por Deus, virgem, esposa, mãe e irmã, como coroa da humanidade, com o seu “faça-se” incondicional, salva a sua condição, transtornada no Paraíso; e salva-a segundo a promessa aí mesmo feita pelo Criador (Cfr Gen, 2, 18-35; 3, 1-21).
Com a ua obediência, sem qualquer hesitação ou reserva às palavras do Anjo, José salva a condição masculina, no Paraíso vítima da mesma tentação e destinatária da mesma promessa.
Assim Deus Se dá todo à salvação do homem todo.
Claro, Deus sem deixar de ser Deus, porque o todo absoluto é a comunhão trinitária, pela qual temos uma única natureza divina com três relações, a que chamamos pessoas.
Isso levar-nos-ia a outro campo de reflexão que, apesar de oportuno, poderia distrair-nos do essencial, que aqui consiste na percepção da totalidade que encerra em si o mistério da Encarnação; mistério que é, por antonomásia, segundo a Linguagem dos Padres da Igreja, o mistério da misericórdia e da graça divinas.
Mas este mistério abrange também o da disponibilidade do homem para acolher essa graça e o efeito dessa misericórdia, porque não há troca de dons onde não existe liberdade para dar e receber que implique um dar-se e receber-se.
Talvez possamos, mais uma vez, recorrer à ajuda de anto Agostinho, que, por exemplo, diz num dos seus comentários aos salmos.
“Louva sempre o Senhor, sem nunca esqueceres todos os seus benefícios. É um benefício d’Ele, que tu, sendo pecador e ímpio, tenhas sido chamado à Graça da justificação. É um benefício seu que tenhas sido elevado e amparado para nunca mais cair. É um benefício seu que te tenham sido dadas as forças necessárias para perseverar até ao fim. É um benefício seu que também este corpo, de que sentes continuamente o peso, ressuscite e não se perca sequer um cabelo da tua cabeça. É um benefício seu que, depois de ressuscitado, tu sejas coroado. É um benefício seu que possas louvar eternamente, sem defeito, o teu Deus. Não esqueças nenhum dos seus benefícios, se queres que a tua alma louve o Senhor, que te coroa com a misericórdia e o perdão” (En. in Ps. 102, 7).