“Vendo que muitos fariseus e saduceus vinham ao seu baptismo, disse-lhes: «Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera que está para vir? Produzi, pois, frutos dignos de conversão e não vos iludais a vós mesmos, dizendo: ‘Temos por pai a Abraão!’ Pois, digo-vos: Deus pode suscitar, destas pedras, filhos de Abraão. O machado já está posto à raiz das árvores, e toda a árvore que não dá bom fruto é cortada e lançada no fogo»” (Mt 3, 7-10).
Era uma linda tarde daquela Primavera romana que chega normalmente mais cedo, atraindo assim grande número de turistas do norte da Europa:
Nós éramos três amigos, por razões diferentes bastante familiarizados com as ruas e os monumentos da Cidade Eterna; aproveitando da branda luz do sol da tarde, mais para ver o já visto do que para descobrir fosse o que fosse, subimos ao Pincio e comentávamos o movimento dos turistas na Piazza del Popolo, rodeada de igrejas quase sempre vazias; depois olhámos a beleza monumental: aquela floresta de cúpulas, que pareciam moderar a sua marcha para o alto, em atenção ao que Miguel Ângelo copiara do Panteão, para engrandecer a basílica do Príncipe dos Apóstolos.
Eu, tímido por feitio e reservado por táctica – gostei sempre mais de pensar, falando para mim – dava pasto aos olhos, deixando que os ouvidos escutassem o essencial da conversa dos amigos.
De facto, discutiam com certo calor, porque não faziam a mesma leitura daquilo que víamos os três, e, com é óbvio, os três líamos de modo diferente.
Por isso mesmo, não me metia na discussão, até porque queria aproveitar o que de positivo encontrava em todas as leituras.
De repente, um deles dispara, sem prevenir os seus ouvintes, como quem regressava das profundezas do pensamento humano e aí descobrira o cúmulo do vazio que alimentava o nosso encanto:
– Já viste que nada disto contribui para o aumento da fé dos milhões de pessoas que todos os anos aqui vêm? E quem dera que não contribuísse antes, para diminuir a de muitas dessas pessoas!
Não entrei na discussão, que, sem deixar de ser amiga, continuou acalorada, como se de um grave problema teológico se tratasse.
Eu, ainda mais fechado na minha reserva, saltava de Roma para Jerusalém e Antioquia, olhando depois o espectáculo deprimente de tantas cidades europeias, com a sua riqueza monumental em ruínas, erguendo ao Céu os gritos da humanidade esmagada por elas e pisada pelos sobreviventes.
Parei em Auschwitz, aterrorizado; mas o que mais senti foi vergonha: por Auschwitz, claro, o da Polónia e da Alemanha, como os Goulags da URSS e todos os outros de que não se fala; vergonha disso, mas especialmente dos cerimoniais hipócritas, cuja loquacidade não abre sequer um ténue raio de luz sobre a semente do crime que, vivo ou adormecido, está em germe no fundo de cada um de nós.
E percebi melhor a argumentação daquele companheiro do passeio pelas sombras amenas da Villa Borghese, ainda que procurando matizar o pessimismo das suas conclusões: afinal, os monumentos servem apenas para julgar os outros e, na maior parte dos casos, condenar sem matizes, avivando rancores que, surgida a oportunidade, acabarão em violências e crimes mais graves.
Nas margens do Jordão, João Baptista previne os que o visitam pavoneando-se com a sua ascendência abraâmica:
Tendes de modificar o sentimento dos vossos corações, pois vos digo: Deus pode suscitar, destas pedras, filhos de Abraão.
Recordo-me de ter lido algures que André Malraux terá dito que o mundo caminhava para se transformar num imenso museu.
Não terá isso acontecido já com a Europa, onde até as ideologias mais aguerridas lhe dão o aspecto de um imenso cemitério onde se luta por ressuscitar tantos erros do passado, recente e longínquo?
E não posso ocultar uma certa inquietação, ao ver que muitas vezes, na Igreja, sobretudo no camo da actuação pastoral, se tende a reduzir a fé aos gestos, àquilo que agradará certamente aos olhos: quilo que, como e lamentava de si mesmo Santo Agostinho, nos fascina pela sua efémera beleza, escondendo a Beleza eterna, que é de onde ela provém.
A Europa, o mundo, transformados num museu, ao gosto de artistas, curiosos e veraneantes endinheirados, será a última tentação de Cristo, não a referida por Níkos Kazantzákis, mas a de São Mateus (4,8-11):
“Em seguida, o diabo conduziu-o a um monte muito alto e, mostrando-lhe todos os reinos do mundo com a sua glória, disse-lhe: «Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares.»
Respondeu-lhe Jesus: «Vai-te, Satanás, pois está escrito: Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a Ele prestarás culto.»
Então, o diabo deixou-o e chegaram os anjos e serviram-no”.
Há que resistir como Cristo, porque nenhum dos que usufruem dessa monumentalidade acredita que o nosso Deus valha para alguma coisa: andamos a pregar um Deus inútil.