Em primeiro lugar, nesta manhã de céu plúmbeo, apesar das temperaturas um pouco menos pesadas, gostaria, em primeiro lugar, de salvaguardar duas ou três coisas que poderão ter ficado confusas no texto que ofereci ontem aos meus leitores.
– O episódio do jovem rico: designação tradicional que se justifica pelo contexto. Acontece, porém, que, de facto, nenhum dos evangelhos sinópticos – mateus, marcos e lucas – inicia a narração dizendo que se trata de um jovem: e lucas informa até que se tratava de um “árchon”, palavra que alguns traduzem por “príncipe”. Mateus diz apenas que, a certa altura, Jesus respondeu ao “jovem” (v 23).
Finalmente, quem fala da simpatia de Jesus pelo seu interlocutor é marcos (v 21), quase como quem explica a última oferta de Jesus àquele coração inquieto, que se retira triste, porque está amarrado às coisas.
E é a este estar amarrado às coisas que ligo as reflexões, a partir da munha releitura crente dos textos feriais desta terça-feira, especialmente do Evangelho.
Não escondo que o faço lutando com a memória, que teima em saltar entre duas datas de grande transcendência para quem queira meditar a sério sobre o destino desta Europa, de novo à beira de um abismo que, mais do que em qualquer outra época, a verificar-se – o que Deus não permita -, arrastará consigo praticamente toda a humanidade.
Entre estas duas datas medeiam 815 anos, mas a sua relação, ainda que por contraste, parece-me cada vez mais significativa:
De facto, em 1153, morria no local por ele próprio designado Claraval – um dos sítios mais emblemáticas da história cultural e religiosa do Ocidente, completamente destruído, pela fúria revolucionária, seis séculos depois -, morria aí um monge, que também passou à história como nome de Bernardo de Claraval, e que consumira a vida lutando em várias frentes, uma das quais a unidade e a paz da Europa.
Esta mesma Europa, oitocentos e quinze anos depois, quando algumas das nações começavam a erguer-se da prostração em que as esmagara a tirania do imperialismo, assiste impotente à morte da primavera política, pela intervenção dos homens e das armas do Pacto de Varsóvia.
Aconteceu isto apenas há 56 anos! Terá havido algum progresso, ou pelo menos, aumento do bom senso, sem o qual facilmente o crime, mesmo mais bárbaro, se transforma em coragem e heroísmo de conquista?
Afinal, para todos e por todos os motivos, soam com actualidade flagrante as palavras de Jesus, que tanto chocaram os próprios discípulos:
“Em verdade vos digo: Um rico dificilmente entrará no reino dos Céus. É mais fácil passar um camelo pelo fundo duma agulha do que um rico entrar no reino de Deus”.
Sabemos todos, embora não pensemos nisso como devíamos, que aqui o rico não é o que tem muitas posses: basta que tenha o coração preso, ainda que seja a algo que não valha mais que a colher que São Josemaria viu o pedinte tirar do bolso para comer a sopa que lhe davam à porta da instituição de solidariedade social.
Quem poderá então salvar-se?
A resposta de Jesus, por muito que alguns se esforcem em mostrar o contrário, não ameniza a força da hipérbole; nem vale a pena substituir o camelo por uma corda ou um calabre: porque sem liberdade estará sempre o preso a qualquer coisa, mesmo que seja por uma linha de coser.
Quem poderá então salvar-se?
Só quem cortar o laço, que não agrilhoa menos se for apenas uma linha. E como se corta?
Confrange o coração ouvir esta pergunta, formulada de tantos modos, sempre carregada de cepticismo, por parte de uma multidão de discípulos de hoje.
Sabemos muito bem que nada se consegue, sem a Graça e a força de Deus.
Não é outra a resposta de Jesus:
“Aos homens isso é impossível, mas a Deus tudo é possível”.
E voltamos ao mesmo:
Ainda que num contexto diferente, afirma São Paulo:
“Há um só Corpo e um só Espírito, assim como a vossa vocação vos chamou a uma só esperança; um só Senhor, uma só fé, um só baptismo; um só Deus e Pai de todos, que reina sobre todos, age por todos e permanece em todos” (Ef 4, 4-6).
Não vale a pena perder tempo a analisar o peso das dificuldades, análise na qual se inclui muitas vezes o esforço de redução da hipérbole usada por Jesus, que, como noutras ocasiões (ver por exemplo, a questão do divórcio e o discurso do Pão da Vida), não dá qualquer explicação que torne a sua linguagem mais acessível a mentes fechadas nos orgulhosos parâmetros da razão.
Nem podemos cair na heresia de criar um deus diferente, para que se salvem imagens falsas que, em vez de nos aproximarem do único Senhor, que não perdoa ao publicano por ele ser publicano, mas porque ele reconhece os seus erros e propõe emendar-se; em vez disso, identificam-nos com o fariseu, que não encontra nada de que pedir perdão.