Testemunho no 50º aniversário da ordenação sacerdotal

Desejo neste momento testemunhar a minha fé de modo simples e sintético. Creio na existência de um verdadeiro amor, o Amor eterno e santo de Deus, que veio ao nosso encontro na pessoa e no rosto humano de Jesus Cristo.
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“Não a nós, Senhor, não a nós,
Mas ao Teu nome dá glória
Pela tua bondade e fidelidade” (Sl 113, 9)

Quando olhamos para trás e procuramos abarcar um período de 50 anos da nossa vida com um único olhar, uma multidão de rostos, nomes, memórias, acontecimentos e sentimentos como que nos assaltam em catadupa, entrecruzam-se confusamente e parece-nos difícil pôr em ordem. Desfilam diante de nós como uma série de flashes instantâneos. E ficamos com a sensação de que cinquenta anos parecem um dia!

Após um tempo de meditação parece-nos então encontrar um fio de ouro que lhes dá unidade: o reconhecimento na memória e na alegria, o desejo de renovar o “sim” ao dom de Deus, um olhar de esperança cheia de confiança.

Reconhecimento na memória e na alegria

O primeiro sentimento que me parece mais importante sublinhar é o reconhecimento e a alegria. E o motivo profundo é precisamente este: foi Deus que fez tudo. Tudo é graça! És Tu, ó meu Deus, que estás na origem do meu ser, do que tem e do que fez de bom. Por isso sejam dados louvor, glória e bênção a Deus Pai que em Jesus Cristo e no Seu Espírito nos conduziu a este momento de alegria: pelo dom da vocação, pelo dom do ministério, pelo dom da perseverança, pela alegria com que sempre o vivi, pelas mil alegrias que me ofereceu ao longo do ministério. Confesso com toda a sinceridade que foram cinquenta anos de vida feliz como presbítero e como bispo, vividos sob o lema “servidores da vossa alegria”. Creio que a alegria do Evangelho deve ser caraterística da nossa fé, como o bom vinho das bodas de Caná. “Se não tenho a alegria da minha fé, não poderei dar testemunho e os outros dirão: ‘mas se a fé é assim tão triste, é melhor não tê-la”. Nesta vivência alegre do ministério não posso esquecer a proteção terna e materna da nossa Boa Mãe do Céu, Nossa Senhora de Fátima, e dos santos Pastorinhos, cujo conforto senti, de modo muito próximo e vivo, em momentos de dificuldade. Obrigado, minha querida Mãe! Obrigado meus queridos amiguitos do Céu! 

Neste reconhecimento ao Deus da minha alegria queria juntar o reconhecimento de amor à Igreja, em cujo seio nasci para a fé e a vida divina pelo batismo, de cujos lábios recebi o nome querido de Jesus Cristo e o Seu Evangelho, de cuja imposição das mãos recebi o dom do sacerdócio ministerial para o serviço do Povo de Deus e onde me é dado viver numa família universal de irmãos e irmãs em humanidade e na fé.

O meu reconhecimento abraça ainda todos quantos me estiveram próximos e me guiaram, que seguiram os meus passos desde o berço materno até hoje (meus pais e familiares), os que me brindaram com o dom da amizade, os que se fizeram companheiros de viagem e de apostolado, de quem recebi testemunho confortante. Enfim, todos aqueles e aquelas que encontrei ao longo do ministério- e foram já tantos – e aos quais dei parte da minha vida. Entre estes seja-me permitido destacar particularmente todos os caros diocesanos, o caro presbitério e demais colaboradores desta minha e nossa querida Diocese de Leiria-Fátima! 

Renovar o sim ao dom de Deus

Este dom do sacerdócio pode ofuscar-se, perder a luminosidade, não ser reconhecido na sua força. Se alguma coisa o exercício do ministério ao longo dos anos nos faz experimentar, de modo evidente, é a distância entre a enorme grandeza do dom e a pequenez, a pobreza e a fragilidade daquele que o recebe. Tanta santidade escondida que Deus nos vai mostrando ao longo do caminho e que nos faz sentir tão pequenos e indignos. Que nos lembra a cada passo que o apóstolo nunca pode deixar de ser discípulo, pecador e penitente humilde, “porque cada um de nós é ao mesmo tempo grande e miserável” – como escreveu Jean Guitton. E continua: “Como pode um padre conhecer-se e aceitar-se perante Deus, perante Jesus, como pecador e santificado? Perguntei-o a um amigo padre e ele respondeu-me admiravelmente: ‘Eu canto dois cânticos: o Miserere e o Magnificat” (Cartas Abertas, p.105).

O conhecido biblista Raimond Brown observa que nunca deixaremos de nos escandalizar pelo facto de que o mistério da salvação foi posto nas mãos de seres humanos. Todos os dias descobrimos que trazemos este dom e mistério em vasos de barro.

Por isso desejaria pedir hoje a Deus e a vós irmãos/ãs perdão pelos meus pecados e negligências e pedir também a graça de renovar o propósito de entrega a Jesus Cristo; de abraçar o sacerdócio com o calor e o entusiasmo da primeira hora, acrescido pelo conhecimento do mistério de Deus e do homem, que o ministério me ajudou a aprofundar.

Um olhar de esperança

Por último, um sentimento de esperança: aquela esperança que nos volta para o futuro, com a certeza de que Aquele Jesus que nunca nos faltou até agora, mesmo nas provações que nos purificam, também não nos faltará e nos há-de guiar sempre com a luz e a força do seu Espírito. “Com Ele a meu lado não vacilarei” (Sl 15, 8).

Trata-se, antes de mais, de esperança no sacerdócio, apesar das aparências imediatas. É a esperança de que Deus nunca deixará de suscitar no coração da Igreja a vocação ao sacerdócio como dom para o seu povo e para a humanidade. 

Se o povo de Deus vir em nós esta capacidade de ação de graças, de estar contentes e felizes com o dom recebido, de renovar sempre o nosso empenho de dedicação, o sacerdócio tem certamente um futuro. O mistério de Deus que age no íntimo dos corações, passa também através do testemunho de ação de graças, de louvor, de alegria, de esperança e de renovação dos seus padres.

Além disso, esta esperança alarga-se ao mundo: o dom do sacerdócio não é só para a Igreja, mas também para a humanidade, para o mundo inteiro. À semelhança de Cristo, médico divino, o padre enquanto pastor do povo de Deus cuida, simultaneamente, da saúde espiritual da humanidade. Como homem do Evangelho apela ao que há de melhor e mais positivo no fundo do coração de cada ser humano, homem ou mulher, levando Cristo e semeando a sua Palavra, nas imensas metrópoles ou nas pequenas aldeias mais recônditas do mundo que, às vezes, nos parecem à margem da história, como era Nazaré quando Deus enviou o Anjo da Boa Nova a Maria.

O serviço mais precioso a prestar a cada ser humano é ajudá-lo a descobrir a sua dignidade única e ímpar de filho e filha de Deus, ajudá-lo a compreender o valor da sua vida que é sem preço, que ela pode ser revestida de graça, de beleza divina e como é infinita a misericórdia de Deus por cada um.

Embora vivendo um momento obscuro, confuso, duro e fatigante de viragem epocal nos inícios deste milénio, por isso mesmo é também um momento entusiasmante e apaixonante de ser padre, se soubermos ser dignos desta hora e dos seus desafios inéditos, com o testemunho corajoso e sob a guia clarividente do nosso querido Papa Francisco, a quem agradeço e retribuo a amizade pessoal e testemunho a comunhão e a obediência eclesial. 

Desejo neste momento testemunhar a minha fé de modo simples e sintético. Creio na existência de um verdadeiro amor, o Amor eterno e santo de Deus, que veio ao nosso encontro na pessoa e no rosto humano de Jesus Cristo, ressuscitado e vivo! A este Deus Amor se une a minha vida e o meu destino, o que me leva a estar envolvido no mundo para testemunhar este fascínio e este amor. Estou convencido que a minha vida é um dom de Deus e que eu devo oferecê-la para o bem dos outros.

E, para terminar, a coisa mais importante de todas é pedir a Cristo com as palavras do santo cardeal Newmann: “que eu possa receber o dom da perseverança e morrer, assim como desejo viver, na tua fé, na tua Igreja, no teu serviço, no teu amor”!

Obrigado a todos vós pela vossa presença, pelo vosso afeto e pela vossa oração. Que Deus vos abençoe e Nossa Senhora vos guarde e proteja!

Basílica da Santíssima Trindade, Santuário de Fátima, 7 de novembro de 2021.

† Cardeal António Marto, Bispo de Leiria-Fátima

TESTEMUNHO
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