No passado dia 22 de janeiro, terminou o ciclo de teologia prática proposto, este ano, pelo Centro de Cultura e Formação Cristã dedicado ao tema “Cuidar (n)as fronteiras da vida”. A iniciativa procurou situar a reflexão no cruzamento entre a ética e a espiritualidade num itinerário formativo orientado por diversos intervenientes, das áreas da teologia, da bioética e dos cuidados biomédicos.
No texto de apresentação do curso, a organização indicava que este ciclo de estudos sobre o cuidado da vida humana era proposto como um itinerário de reflexão em dois tempos. Num primeiro módulo dedicado ao tema “hermenêutica cristã da condição humana”, os participantes eram convidados a aprofundarem uma leitura cristã da vida enquanto dom frágil. As fronteiras da vida interpelam-nos a um questionamento da fragilidade, do sofrimento, da morte, e dinamizam-nos ao cuidado do outro como único jeito de ser verdadeiramente autêntico. Numa leitura cristã, o cuidado oferecido é potenciador de olhares renovados sobre a vida, mesmo – ou sobretudo – a partir dos seus momentos de maior vulnerabilidade.
Num segundo módulo dedicado ao tema “cruzamentos éticos no limiar da vida”, os participantes eram confrontados com alguns dos desafios éticos com que a prática do cuidado se debate, particularmente na área da saúde: a compaixão nos cuidados continuados, o desafio da evolução técnica e a desumanização do cuidado, o lugar da espiritualidade nos cuidados de saúde, o cuidado pela identidade do doente, os cuidados paliativos com crianças, a temática da esperança e da obstinação terapêutica, e o desafio de uma presença de vida num luto de morte. Nestes cruzamentos éticos expressa-se a relevância da dimensão espiritual no acompanhamento dos mais vulneráveis e a dimensão verdadeiramente holística do cuidado. Lugar ético de excelência, o cuidado é espaço em que a pessoa se diz, dizendo simultaneamente algo do outro. Não raras vezes, esta prática é o único testemunho humanizador no limiar do humano.
Ponte entre a Teologia e a vida
A motivação que preside a este projeto é a que esteve na génese do primeiro ciclo de teologia prática, que teve lugar no ano pastoral de 2014-2015. Nessa altura, o Centro de Cultura e Formação Cristã entendeu ser sua missão apresentar uma oferta formativa que fizesse, de uma forma muito evidente, a ponte entre a teologia e as inquietações pastorais e vivenciais das pessoas. Estas propostas no âmbito da teologia prática procuram refletir a certeza de que a formação cristã toca a vida de todos e se debruça sobre o concreto da vida que o evangelho é chamado a fermentar. Particularmente num contexto que sublinha a “estranheza” da proposta cristã, o evangelho permanece como Palavra atual e a fé como fermento de um estilo de vida que transforma o mundo.
Consciente de que as paróquias se defrontam com o desafio de um progressivo esvaziamento das comunidades, as propostas formativas do Centro vão procurando fugir aos lugares e encontrar outras formulações que possam chegar, em linguagem simples, às fronteiras das comunidades. Nesse ano de 2014, com o ciclo “A gestação da fé. Propor o evangelho, hoje”, o Centro fez uma proposta muito particularmente dedicada aos educadores da fé, com um itinerário que começou por fazer um diagnóstico da fé no tempo presente, para depois aprofundar o lugar da educação na transmissão da fé, e finalmente traçar um estilo pastoral para os nossos dias e as coordenadas para um jeito cristão de viver a fé.
Neste ano pastoral, enquadrado na temática do Jubileu da Misericórdia, o Centro considerou ser oportuno lançar uma formação dirigida particularmente a pessoas envolvidas em cuidados de saúde e em cuidados sociais dos mais vulneráveis, mas cujo interessasse se pudesse estender a um leque mais alargado de participantes. A temática do cuidado revelou ser do interesse de muitos, sendo seguido por cerca de 35 participantes.
Conferência de encerramento
“Cuidar do cuidador (frágil)”
Na noite de 22 de janeiro, o Centro de Cultura e Formação Cristã promoveu, no Seminário de Leiria, a conferência conclusiva do ciclo de ética e espiritualidade. O tema “cuidar do cuidador (frágil): elementos para uma espiritualidade do cuidado” foi trabalhado pelo padre José Frazão Correia, teólogo e provincial dos Jesuítas em Portugal. A conferência, de entrada livre, contou com um auditório de cerca de 150 pessoas.
Se o percurso formativo do ciclo evidenciara que o cuidador é, também ele um lugar frágil, ferido e necessitado de cuidados, faltava ainda aprofundar os elementos de que se alimenta o cuidado, particularmente a partir dessa perceção de que é uma relação de frágeis.
O padre José Frazão Correia começou por sublinhar que uma dupla dimensão com que se apresenta o cuidado: por um lado, o cuidado como afeto, na medida em que “cuidar tem a ver com a justa relação, com a presença suficiente e com a suficiente distância também”. Por outro lado, o cuidado prende-se também com “atender à dramaticidade da vida”, procurando ser auxílio a que os passos do outro sejam prudentes.
Que o cuidador é frágil é algo que transparece na vida de todos. “A fragilidade tem a ver com o lado finito da nossa existência, com o custo das relações, com o envelhecimento”, sublinhou o teólogo. Na medida em que vive da liberdade de quem recebe e de quem dá, a relação só pode ser frágil. E, na medida em que o cuidado é relação de afeto, o cuidado é também ele frágil.
Em jeito de síntese, José Frazão Correia apontou quatro coordenadas do cuidar: “o cuidado expõe a minha identidade à minha capacidade de ser amado, à minha capacidade e dever de amar, à grandeza do que sou, e à fraqueza do que sou”. Nesse sentido, sublinhou, o cuidado há de ser compreendido “como relação de extrema fecundidade e de extrema tentação”, já que “o drama da nossa existência é que duvidamos constantemente acerca da certeza de sermos ou não amados”.
Na primeira pessoa
# Margarida Pires
Margarida Pires é assistente social e dirige uma IPSS. Inscreveu-se motivada pela temática geral do ciclo de ética e espiritualidade “Cuidar (n)as fronteiras da vida”, e pela formulação dos títulos das sessões – «perspicazes jogos de palavras, que encerram em si reflexão e que fazem refletir». Embora tivesse um particular interesse pelo segundo módulo, mais direcionado às questões éticas, foi com alguma surpresa que o primeiro módulo, sobre a hermenêutica cristã da condição humana, “terá sido aquele que mais me fez refletir, provavelmente pela forma como a abordagem foi feita. Para mim foi desconstruir, para reconstruir de uma forma muito mais bela”.
# Amália Saraiva
Amália Saraiva é Irmã Reparadora de Nossa Senhora de Fátima. Chegou ao ciclo atraída pela “pertinência do tema, que por si só foi motivador. É um tema para todos. Todos somos cuidadores e simultaneamente necessitados de cuidado”. A sua síntese recorda os conteúdos fundamentais desta formação: “foi apresentada uma abordagem holística do cuidar, sendo que o acento no humano fez com que este ciclo de estudos tivesse uma dimensão prática muito significativa. Num registo teológico, bíblico, histórico e sociológico, abordaram-se temas complexos como o sofrimento e a morte de modo a desmistificar os preconceitos subjacentes a estas realidades. A evolução técnica nas suas variadíssimas formas não prescinde do cuidado humano afetuoso e próximo. A conferência final teve o mérito de sistematizar o tema, sublinhando as quatro coordenadas que presidem ao cuidar: sentir-se amado; ser capaz de amar; reconhecer a grandeza e a fraqueza pessoal que são constantes numa relação de cuidado”. Amália Saraiva reserva ainda uma palavra aos formadores que, “além da competência disciplinar, se revelaram excelentes comunicadores, abertos ao diálogo, à troca de experiências, criando um ambiente formativo informal e descontraído, muito favorável à aprendizagem entre adultos”.
# André Pereira
André Pereira trabalha como assessor no Santuário de Fátima e é formado em teologia. Tendo sido desafiado a orientar uma das sessões do primeiro módulo, optou por participar na quase totalidade do ciclo. Para ele, este foi «um percurso particularmente fecundo de leitura interdisciplinar e ‘situada’ da condição humana», na medida em que a temática se debruçou sobre «aspetos vivenciais concretos, dramas reais e questões experiencialmente enfrentadas». Sintetiza desta forma a sua experiência: «o desafio deste itinerário foi o de tomar a nossa condição de fragilidade como lugar de esperança, fecundidade e vida». E remata: «reconheço, com muito agrado, que as reflexões aportadas e os caminhos calcorreados – como gérmen de uma reflexão a construir pela vida fora – se revestiram de uma riqueza e uma significatividade tais que não terão deixado indiferente qualquer dos participantes. Uma ótima iniciativa a estender a outros temas-chave!»
# Maria do Carmo Ribeiro
Maria do Carmo Ribeiro é missionária comboniana. Inscreveu-se no ciclo “porque é um tema que sempre me ‘cativou’. Interessa-me sobremaneira o discurso e reflexão deste tema, sob várias vertentes, e claro também no seu aspeto teológico e existencial. E agora que estou, há quase cinco anos, a cuidar da minha mãe a tempo inteiro, foi muito bom ouvir confirmar, de algum modo, a graça inexplicável que estou a viver”. Para além da temática, Maria do Carmo sublinha a qualidade das apresentações: “na maioria dos casos, os temas foram apresentados a partir duma profundidade e abrangência, que iam beber à grande qualidade do saber académico aferido pela experiência refletida, com uma sensibilidade pessoal particular, que lhes deu uma beleza própria. Sim, penso que foi determinante a alta qualidade dos relatores: a sua preparação académica, profissional e o modo como conjugam isso com uma sensibilidade, experiência, e o modo como estão na vida: foi uma transmissão de vida, bela, essencialmente”. Entende que ajudar os cuidadores a compreenderem a sua vocação e a espiritualidade que habita o cuidado é um meio de preencher uma lacuna de instrumentos que ajudem as pessoas nesta vocação do cuidar, “que quase nunca é escolhida, e muitas vezes nunca chega a ser aceite conscientemente”. Cuidar do cuidador, também ele frágil, é missão importante: “todos conhecemos verdadeiros dramas, em ‘duplo’: a pessoa doente, e os que a cuidam que entram em desespero, em depressão, em revolta… E a maior parte das vezes, infelizmente, não conseguimos mais que fazer o papel de ‘amigos de Job’.”
Os ciclos de teologia prática
Os ciclos de teologia prática do Centro de Cultura e Formação Cristã são cursos livres dedicados a um tema específico, explorado a várias vozes num percurso organizado por módulos. O caráter livre da participação e a estrutura modular procuram, por um lado, oferecer uma abordagem interdisciplinar às temáticas exploradas e, por outro, facilitar aos participantes com maior dificuldade em se comprometer com uma formação sistemática a longo prazo o acesso a temas específicos da formação cristã.
Na sua primeira edição, no ano pastoral de 2014-2015, o ciclo foi dedicado ao tema “A gestação da fé. Propor o evangelho, hoje”. Teve por público-alvo os educadores da fé e contou com a presença de 20 conferencistas.
O segundo ciclo foi dedicado ao tema “Cuidar (n)as fronteiras da vida”. Este ciclo, com uma abordagem a partir da ética e da espiritualidade, teve por público-alvo os cuidadores e contou com a presença de 13 conferencistas.
Atividades em agenda
Ainda no curso deste ano pastoral, o Centro de Cultura e Formação Cristã promoverá os “Encontros Pascais”, um ciclo de conferências em tempo pascal, este ano dedicado à temática da misericórdia, com o título: “A misericórdia tem rosto”. O mote para este ciclo de conferências foi colhido da carta de Tiago: “a fé sem obras está morta” (Tg 2,17). Nestes encontros, cujo programa será brevemente divulgado, procurar-se-á evidenciar implicações práticas do tema da misericórdia.
No próximo ano pastoral, é de esperar a apresentação de um renovado curso de teologia, com uma reforçada componente bíblica e uma particular atenção ao cruzamento da teologia com o quotidiano da vida cristã. O próprio curso de teologia incorporará pequenos cursos livres interdisciplinares, a várias vozes, que procurarão fazer a ponte entre uma formação cristã mais sistematizada e temáticas de particular interesse para os participantes.
No contexto do biénio pastoral da Diocese, dedicado à figura de Maria e à mensagem de Fátima, o Centro irá também promover um curso livre sobre o acontecimento e a mensagem de Fátima, em pequenos módulos temáticos, oferecidos em Leiria e em Fátima. Os módulos corresponderão a diferentes prismas através dos quais se pode ler o acontecimento em torno das aparições da Senhora do Rosário: a história do acontecimento e o seu contexto; a teologia da mensagem e as implicações para a vida da Igreja; a iconografia de Fátima; as práticas pastorais.
Passado o ano pastoral dedicado, na Diocese, à mensagem de Fátima, regressarão os ciclos de teologia prática com novas temáticas a abordar.
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