SÓ DEUS É ETERNO

(O texto que se segue, guardava-o já no fundo baú, também por um certo pudor. Encorajou-me a publicá-lo a memória litúrgica de Santo André Kim, primeiro sacerdote coreano, formado pelos portugueses em Macau).

“É ainda o que profetizou Isaías:

Se o Senhor dos exércitos não nos tivesse deixado uma descendência,

teríamos ficado como Sodoma,

seríamos como Gomorra” (Rom 9, 29).

Citação paulina, de um pensamento que marca alguns dos passos mais sérios dos evangelhos, como vemos, por exemplo, em Lucas 13, 1-5: “Nessa ocasião, apareceram alguns a falar-lhe dos galileus, cujo sangue Pilatos tinha misturado com o dos sacrifícios que eles ofereciam.

Respondeu-lhes: «Julgais que esses galileus eram mais pecadores que todos os outros galileus, por terem assim sofrido? Não, Eu vo-lo digo; mas, se não vos converterdes, perecereis todos igualmente. E aqueles dezoito sobre os quais caiu a torre de Siloé, matando-os, eram mais culpados que todos os outros habitantes de Jerusalém? Não, Eu vo-lo digo; mas, se não vos converterdes, perecereis todos da mesma forma.»

Assaltaram-me como um golpe da memória, quando esta manhã, subia ao altar, com o coração estremecido de gratidão a Deus, por todos quantos, desde há oitenta e nove anos, foram e continuam a ser instrumentos da Sua Bondade na realização do projecto divino que encerra a minha existência temporal.

E, primeiro que todos os outros, aqueles que acolheram com tanta dedicação e carinho, esse projecto, logo que se deram conta da sua existência.

Nasci nove meses depois.

Disseram-me que foi a meio da tarde de uma sexta-feira, quando o sol, que respirava já o ar amortecido do Outono, alongava as sombras das árvores da beira do caminho.

Do que aconteceu depois, durante os primeiros anos, considero extremamente positivo o não me terem ficado lembrança negativas, nem feridas traumatizantes; certamente porque apesar de nem tudo ter sido do meu agrado, e as lágrimas, que também, as houve – as crianças choram muitas vezes – , não sei como foi, porque sempre que chorava, tinha uma vaga sensação de estar a trair o carinho dos que me rodeavam. E assim fui aprendendo, sem teorias de qualquer tipo, que a vida não se constrói sem trabalho, dores e muitas alegrias.

E também será no seio da família que melhor se aprende que a dor alheia pode ser a nossa, através de gestos que nos ponham em comunhão com quem sofre.

Por isso peço que me deixem recordar aqui dois casos que marcaram para sempre a minha infância e adolescência:

Era primeiro aquela frase com que minha mãe, em tom de explicação, decidia comprar sempre meia dúzia de sardinhas, quando, de vez em quando, passava pela nossa porta uma vendedora cujo sotaque me encantava sobremaneira: – É para as ajudara a viver, dizia minha mãe.

E eu já não conseguia saborear tão gostosa iguaria, sem me lembrar daquelas pobres mulheres, que vinham da praia, percorrendo quilómetros e quilómetros, a pé, de canastra à cabeça, com o material da sua sobrevivência.

Não. Não era traumatizante, mas profundamente pedagógico: assim, eu ia tomando a sério a advertência de que o que tinha nas mãos – nesse tempo a broa e a sardinha não se comiam em pratos, com faca e garfo – chegara lá à custa de muitos suores: desde o mar, onde se pescava a sardinha, aos campos, onde se cultivava o milho.

Algo de semelhante acontecia mais tarde, já em plena adolescência, com o amolador, que anunciava a sua chegada fazendo soar o seu característico apito e, com aquela estranha máquina, parava sempre à mina porta, não por ser a primeira do lugar, mas porque também aí havia sempre qualquer coisa – uma peça de louça para consertar, uma faca para afiar ou algumas varetas a ajustar no guarda chuva – “para o ajudar a viver”- dizia minha mãe, no mesmo tom.

Eu ficava ali, tempos sem fim, contemplando a destreza com que o amolador movimentava sua estranha máquina… depois, sem perguntar a ninguém, ia reflectindo sobre o facto de, a certa altura, qualquer amolador ser designado como espanhol, quando eu via claramente que, apesar dos apetrechos e do serviço, o artista era , na maior parte dos casos, um português.

Foi uma reflexão lenta, por variadíssimas vias, manuseando estudos, romances e poemas, ao longo das décadas, até chegar a esta manhã, recordando o ninho de paz, ternura e serenidade, onde Deus quis que eu visse a luz do dia.

Um ninho de paz e serenidade, precisamente no momento em que a vizinha Espanha era inundada pelo sangue de milhares de vítimas do ódio, sobretudo religioso; e a Alemanha, juntando o ódio étnico e cultural ao político e religioso, abria o átrio das portas da imagem do inferno que foi a guerra e os regimes que se lhe seguiram, com os seus mais de 200 milhões de mártires.

A minha gratidão para com quantos me ajudaram ao longo destes quase noventa anos, a recordar sempre com tanta saudade o ninho em que nasci, não me impede o movimento interior mais positivo, aliás o único válido que, de um modo ou de outro, aprendi nesse ninho, que era também um santuário de fé: SÓ DEUS É ETERNO.

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