Estava a pensar naquela cena do Evangelho cuja narração Marcos insere numa das caminhadas de Jesus, logo a seguir ao episódio dos “pequeninos” que ninguém escandaliza impunemente perante Deus, cena que, não consigo reler sem me aperceber de que sobre todo o ambiente paira a ameaça de uma nuvem de tristeza que só se desfaz com a resposta de Jesus ao desabafo inquieto de Simão, que corresponde ao que se ouvirá durante séculos, hoje de forma mais gritante, da parte de tantos discípulos do Senhor:
«Quem pode então salvar-se?». Fitando neles os olhos, Jesus respondeu: «Aos homens é impossível, mas não a Deus, porque a Deus tudo é possível» (Mc 10, 27).
A Deus, tudo é possível!
Foi o que ouviu Maria, antes daquele seu “faça-se”, “cumpra-se”, que incluía com tal plenitude a entrega da humanidade ao que Deus lhe pedia para se fazer homem, que implica o mistério da Encarnação e tudo o que significa o mergulho da eternidade no tempo.
A Deus, tudo é possível; tudo, até que um rico inquieto, em vez de se retirar triste, por não perceber a simpatia do olhar do “bom Mestre”, abra os olhos e se deixe seduzir por quem o contempla assim, e, vendendo o que tem, ou ficando com ele como se não fosse seu, empreenda a caminhada feliz com que sonhara, mas que não sabia como encontrar.
O pensamento fixa-se-me neste ponto: ficar com tudo o que se tem, como se não fosse seu, mas de Deus, dos que não têm nada, nem pão, nem abrigo, nem cultura, nem fé…
Espero que não me levem a mal que recuse o reducionismo dos que interpretam a resposta de Jesus ao jovem rico, como uma proposta vocacional em ordem ao que hoje se designa, muito confusamente de “vida religiosa”, ou, pior ainda, do ponto de vista teológico, “vida consagrada”.
Não pretendo, nem tenho competência para imiscuir-me em discussões abstractas, teóricas, de âmbito jurídico ou canónico, que têm bom lugar na Igreja, desde que deles não se tire partido para amenizar o sentido radical da doutrina do Vaticano II, que, além de abolir expressões como, “estados de perfeição”, afirma o carácter universal da vocação à santidade de todos os baptizados.
Talvez não fosse de todo inoportuna uma acção formativa que ajudasse as pessoas a distinguir com clareza, conceitos como, PROPÓSITO, PROMESSA E VOTO: ora, admitindo que outros possam pensar de modo diferente, é minha convicção que tudo isso está incluído na proposta de Jesus ao que se convencionou chamar o “jovem rico”.
Constitui para qualquer crente que se debruça sobra a história em busca da caminhada cristã através dos séculos, verificar como, apara além dos milhões que deram literalmente a vida pela defesa da sua fé, mais milhões ainda, de todas as idades e condições, que perceberam e seguiram, segundo as próprias circunstâncias pessoais, o fascínio do olhar de Jesus.
Muitos deles, numa percentagem talvez demasiado reduzida, obtiveram o reconhecimento oficial dos responsáveis da comunidade crente, que, pela beatificação e canonização, os propõe a todos como exemplo de docilidade à graça de Deus, a quem, de facto, tudo é possível
Há muitos, mesmo já dos nossos dias, à frente dos quais está, pelas características da sua vida de estudante divertido, aquele jovem brincalhão, que o Papa classificou de “o santo das calças de Ganga”.
Uma vida curta, aos olhos do mundo, mas riquíssima de propósitos de luta interior, para atingir a santidade, com a alegria de quem se sabe amado por Deus, que não lhe pede senão que dê cor divina às suas tarefas, pujantes de vida.
A este jovem, digamos plebeu, do século XXI, junto, para não me alongar na lista, um jovem príncipe do século XV – o tão mal conhecido e difamado século XV -, que morre aos 26 anos, depois de ter cumprido os mais altos cargos da administração pública, com tão elevado sentido das exigências humanas do seu cargo, que à sua morte, todos os que o haviam conhecido, sobretudo os pobres e os mis débeis dos seus súbditos, choraram a sua perda e o proclamaram santo, mesmo antes do juízo canónico oficial da Igreja.
A Igreja, que, na oração colecta da memória deste santo, reza assim: “Deus todo poderoso, conhecer-vos é viver e servir-vos é reinar: concedei-nos, por intercessão de S. Casimiro, a graça de vos servir em santidade e justiça, todos os dias da nossa vida.”
Dirá alguém: – mas isso pode dizer-se de todos os santos!
Claro. De S. Casimiro (séc XV), como de S. Carlos Acutis (séc. XXI), como de qualquer outro ou outra que, como eles, com promessas e votos, ou sem qualquer enquadramento canónico, perceberam o carinho com que Jesus os convidava a segui-lo, mesmo sem necessidade de vender fosse o que fosse; apenas cortando as raízes que os prendiam a eles próprios.
A Deus, tudo é possível, diz Jesus.
Mas não pode prender a si, porque seria contra a sua dignidade de Criador, quem recusa cortar qualquer empecilho que lhe permita segui-lo, sem constrangimentos.
São Casimiro, além do resto, merece que aproveitemos a sua memória litúrgica, para rezarmos um pouco mais pelos atormentados povos a cujo serviço consumou a sua vida temporal.