A primeira leitura desta quarta-feira, tirada do início do capítulo sétimo do livro do Deuteronómio, que descreve o ritual de consagração do Povo, no deserto, começa com esta palavras:
“Naqueles dias, Moisés falou ao povo, dizendo:
«Tu és um povo consagrado ao Senhor teu Deus; foi a ti que o Senhor teu Deus escolheu, para seres o seu povo entre todos os povos que estão sobre a face da terra»”.
Penso que não me afasto muito da verdade ao concluir que os textos escolhidos pelas respectivas comissões, tanto da reforma do Missal como da Liturgia das Horas, aliás, seguindo uma orientação do Concílio, têm o mesmo tema de fundo, que será, neste caso, a Igreja, o novo Povo de Deus.
Quando se fala da Igreja como comunidade crente, povo santo, escolhido para ser presença do mistério de Cristo na história dos homens, entre os variadíssimos temas de reflexão que se podem adoptar, há dois absolutamente incontornáveis: a vocação à santidade – o Concilio usa a expressão “chamamento à perfeição da caridade” – e a obrigação do apostolado.
Dois textos apenas.
Sobre a vocação à santidade: “Portanto, ainda que, na Igreja, nem todos sigam pelo mesmo caminho, todos são, contudo, chamados à santidade, e a todos coube a mesma fé pela justiça de Deus” (LG 32).
Falando do apostolado dos leigos: “No presente Decreto, o Concílio entende ilustrar a natureza, a índole e a variedade do apostolado dos leigos, bem como enunciar os princípios fundamentais e dar as orientações pastorais para o seu mais eficaz exercício; tudo isto deverá servir de norma na revisão do Direito canónico na parte que diz respeito ao apostolado dos leigos” (AA 1).
Podemos considerar um extraordinário dom do Espírito Santo, que tal temática, tradicionalmente tratada quase só por livros e guias de espiritualidade individual, apareça, de forma clara numa assembleia especialmente solene, como é um concílio ecuménico.
Por outro lado, tem o seu quê de sintomático que a mesma soleníssima assembleia, depois de ter dito que todos os que receberam o sacramento do Baptismo são chamados à “perfeição da caridade”, tenha sentido a necessidade de redigir um decreto sobre o apostolado dos leigos.
Claro; isso não significa de modo nenhum que os padres conciliares admitissem a hipótese de alguém se santificar descurando a sua vocação ao apostolado: mas é evidente que existência um decreto específico sobre o apostolado dos leigos, apesar da sua conveniência para uma correcta reforma do Direito canónico, não deixa de contribuir para a manutenção, ainda que de forma velada, em quem lê os textos apressadamente, do clericalismo que se quer combater.
A “Sociedade do Apostolado Católico” celebra hoje a festa do seu fundador. Um santo sacerdote que passou a vida lutando contra enormes dificuldades de ordem institucional, para conseguir dinamizar os leigos católicos, no sentido de um apostolado concreto, numa Europa que se erguia a custo do terramoto provocado pelas lutas que se seguiram à Revolução Francesa.
A oposição foi tal, que a sua “Sociedade do Apostolado Católico”, só foi aprovada em 1904 por Roma, cidade em que falecera com fama de santidade, 54 anos antes. E o que se pedia não era a aprovação de uma doutrina tão antiga como a Igreja, mas apenas a instituição de uma estrutura canónica que permitisse aos fiéis viver essa doutrina com o apoio da autoridade suprema da Igreja.
A mentalidade clerical, que se acentuou no ocidente, a partir da Idade Média, com o chamado regime de cristandade, explica muitas das dificuldades de São Vicente Pallotti, como outros santos que o precederam e que, quando não desistiam dos respectivos projectos, acabavam em findadores de algo que não pertencia propriamente ao seu carisma inicial.
Esta fonte de incompreensão e dificuldades tona-se mais acentuada, quando se trata de promover e incentivar, com estruturas canónicas adequadas, a vocação de cada um, qualquer que seja a sua condição, à santidade, à “perfeição da caridade”, como lhe chama o Concílio.
Do século XV aos nossos dias, passando por Afonso de Madrid e Francisco de Sales, até Josemaria Escrivá de Balaguer, que, vinte anos após a aprovação das fundações de Vicente Pallotti, publicava um livrinho que hoje só é superado em número de edições, pela própria Bíblia:
“Tens obrigação de te santificar. – Tu, também. – Quem pensa que é tarefa exclusiva de sacerdotes e religiosos? A todos, sem excepção, disse o Senhor. «Sede perfeitos, como meu Pai Celestial é perfeito»” (Caminho, 291).
E um pouco mais adiante:
“Um segredo. – Um segredo em voz alta: estas cries mundiais são crises de santos” (Caminho, 301).
Doutrina clara. Terá ela sido já bem compreendida por todos os que têm a função específica de dotar os fiéis de estruturas que os ajudem a viver, sem entraves, seguindo a voz do Espírito, a sua vocação à santidade?
É apenas uma pergunta.