“Eu Te bendigo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas verdades aos sábios e inteligentes e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11, 25).
No contexto imediato de Mateus, Jesus, após o envio dos Doze, fala da incredulidade das cidades da Galileia, que, quando muito viram n’Ele apenas mais um taumaturgo; e fala desta incredulidade para agradecer ao Pai o dom da fé, que não recebem senão os pequeninos… e inclui várias referências à necessidade do desprendimento sem o qual se não pode ser Seu discípulo.
Não vale a pena perder mais tempo a explicar palavras como “pequeninos”, “sábios”, “inteligentes”, “paz”, “espada” e outras, que, apesar de muito claras no contexto bíblico eme que se encontram, são hoje tão mal entendidas e até manipuladas, por uma certa comunicação social, mais ideológica do que informativa.
Alguém me perguntou há pouco, a propósito dos sufrágios pelos defuntos e da devoção às Almas do Purgatório, tão enraizada na piedade popular e, em muitos casos, ligada com Nossa Senhora do Carmo, título mariano que celebrámos ontem, alguém me perguntou se havia uma pastoral da morte.
As designações, apesar da sua importância, nunca dizem tudo; podem até gerar graves equívocos, lançando a confusão no campo doutrinal, que, como todos os equívocos, não desfeitos a tempo, em vez de alimentar, destroem a fé das comunidades.
Em vez de responder directamente à questão, limito-me a dizer duas coisas:
Primeiramente que, embora isso nem sempre seja claro, o sofrimento e a morte, qualquer que seja a amplitude que queiramos dar ao significado destas palavras, desde a contemplação de Cristo na cruz, para não recuarmos para além do tempo da Igreja, fez sempre parte da actividade pastoral e alimentou tanto a fé como a piedade de milhões de pessoas, de todas s idades e categorias sociais.
Posto isto, o que sinto menos conseguido, particularmente no nosso actual mundo ocidental, será mostrar, na doutrina e na prática, tanto pastoral como canónica, o que no existir especificamente cristão, une a vida com a morte, paralelamente ao que acontece como a Graça e o pecado.
Graças a Deus, não faltam teólogos, nem mesmo documentos muito solenes do Magistério, tanto ordinário domo extraordinário, frisando que a existência do pecado, do sofrimento e da morte é que dá sentido à estrutura sacramental da Igreja, assente na Graça, na luta ascética e na defesa da vida.
Claro, estamos perante um mistério! Um mistério de fé, que como diz Jesus, está escondido aos “sábios e inteligentes”, e só os “pequeninos” descobrirão.
Pergunto, como quem duvida, não, de modo nenhum, como quem censura; mas pergunto exactamente a quem trabalha cheio de boas intenções e terá, disso não duvido, o prémio da Glória, concedido, como diria São Paulo o Justo Juiz:
Será que tanto trabalho e tanta canseira correspondem à necessidade que têm as pessoas de perceber que da geração à morte, com esta incluída, ou se projecta em Deus ou não tem sentido?
E talvez não tenhamos ainda visto com suficiente clareza que, no fundo, tudo aquilo que faz da nossa civilização actual uma civilização de morte parte da recusa em aceitar a afirmação de Jesus. “Aquele que conservar a vida para si, há-de perdê-la; aquele que perder a sua vida por causa de mim, há-de salvá-la” (Mt 10, 39).
Assim como não se vê forma de poder entender a doutrina da Graça, sem uma prática religiosa que realce a doutrina do pecado, não há meio de fazer penetrar a mensagem cristã sobre o mistério da vida, à margem de adequadas celebrações do mistério da mote e do Além.
Sem pretender tornar-me mestre ou juiz seja de quem for, atrever-me-ia a sugerir que cada um dos responsáveis pastorais das nossas comunidades se examinasse serenamente, mas com real sentido de responsabilidade, sobre a introdução ou supressão de práticas, que não têm feito mais do que acentuar na maioria das pessoas, uma imagem da Igreja que quase a confunde com uma ONG.
No interior da comunidade crente, a única fronteira da originalidade criadora é a unidade da fé; esta, porém, bem entendido, não deverá nunca confundir-se com a uniformidade, que nos nossos dias também assume máscaras que é preciso descobrir e denunciar a tempo.
E voltamos ao mesmo: aprender a perder para ganhar e ensinar aos outros, só na intimidade com Deus.
A terminar, voltando à acção de raças de Jesus, com que iniciei estas reflexões, transcrevo, em versão pobre, uma oração de Santo Agostinho:
“Só sei que as coisas caducas e transitórias se devem desprezar, enquanto se devem procurar as imutáveis e eternas.
Isto sei, ó Pai, porque só isto aprendi; mas ignoro donde se deve partir para chegar a Ti. Sugere-me-lo Tu, mostra-me Tu o caminho e dá-me aquilo de que necessito para a viagem” (Solilóquios I, 1.5).