A VINHA E A VIDEIRA
A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
A espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;
De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;
De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.
(Miguel Torga, 10 de Abril de 1937)
Hoje, deu-me para aqui: não é que não me bastasse a referência do Evangelho, como refúgio para escapar aos rigores da canícula que se abateu sobre nós, numa casa que os gabinetes sem contacto com a realidade, privaram do conforto da mata circundante:
De afcto há muito tempo que entre nós as entidades responsáveis, nesta como em muitas outras coisas, em vez de se ocuparem com a sistematização das correntes, preferem secar as fontes.
E quando começam a aparecer os mortos, irrompe a solicitude dos funerais, em que os corpos vão dando lugar às cinzas, porque, embora diminua a percentagem dos vivos, há cada vez menos espaço para a expansão das suas ambições.
Para escapar aos rigores da canícula, bastaria a intimidade com o Evangelho, que, nestes dois dias nos fala de sementeiras generosas e viniculturas diligentes.
Bastaria, claro; mas a imagem da vide e da videira, com o solene aviso do Senhor sobre a impossibilidade da darmos fruto sem Ele, fez-me pensar nas grandes coisas; aquilo em que só reparam os poetas e os santos, uns porque intuem, outros porque vêem o que os órgãos da visão, como instrumentos fiscos, não conseguem, só por si, atingir do que está para além do mundo material.
E assim, os nadas do poeta tornam-se para mim janelas abertas de par em par, com belas lembranças da infância – o poema foi escrito ainda eu não completara o primeiro ano de vida -. onde, exceptuando as “grandes serras paradas”, que eram substituídas por encostas verdejantes e pequenos ribeiros, senda para o mar das águas correntes – havia restos de moradias, com ninhos desfeitos, caídos na poeira. E havia, entre os escombros e à beira dos caminhos, figueiras, muitas figueiras, que, no pino de Verão, nos consolavam com a generosidade da sua sombra e a doçura dos seus frutos.
A marcha incontida do progresso, a ambição, a busca de paragens menos opressoras e mais ricas, associadas ao desleixo, alteraram tudo em poucas décadas.
Ficou a nostalgia das lembranças, a beleza dos versos e o profetismo, que sempre se esconde por detrás de qualquer intuição poética.
“Ver esta maravilha: Meu Pai a erguer uma videira/ Como uma mãe que faz a trança à filha”.
Não têm conto as sugestões ascéticas e místicas – para não dizer teológicas -, desta identificação que faz o poeta do trabalho do viticultor, com a ternura da mãe que “faz a trança à filha”.
Jesus disse aos discípulos: «Eu sou a videira verdadeira e o meu Pai é o agricultor. Ele corta todo o ramo que não dá fruto em mim e poda o que dá fruto, para que dê mais fruto ainda”.
Tudo com a ternura de uma mãe.
“Permanecei em mim, que Eu permaneço em vós. Tal como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, mas só permanecendo na videira, assim também acontecerá convosco, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira; vós, os ramos. Quem permanece em mim e Eu nele, esse dá muito fruto, pois, sem mim, nada podeis fazer” (Jo 15, 1-5).
Na versão actual do Missal Romano, a fórmula de “apresentação dos dons”, que alguns continuam a designar impropriamente por “ofertório”, tem estas palavras de extraordinária beleza: BENDITO SEJAIS, SENHOR, DEUS DO UNIVERSO PELO PÃO QUE RECEBEMOS DA VOSSA BONDADE, FRUTO DA TERRA E DO TRABALHO DO HOMEM, QUE HOJE VOS APRESENTAMOS, E QUE PARA NÓS SE VAI TORNAR PÃO DA VIDA. E, para a apresentação do vinho: … FRUTO DA VIDEIRA E DO TRABALHO DO HOMEM, QUE HOJE VOS APRESENTAMOS E QE PARA NÓS SE VAI TORNAR VINHO DA SALVAÇÃO.
Já faleceu há um ror de anos aquele viticultor que, no início da aplicação da reforma litúrgica, me confidenciou, um pouco a medo, mas com sinais de grande sinceridade:
Senhor padre, sabe o que é que eu gosto mais de ouvir na missa? É aquilo do vinho, fruto da videira e do trabalho do homem, que se vai tornar vinho da salvação.
Os meus leitores compreenderão porque não pude nunca esquecer esta confidência de um paroquiano piedoso.