O dia acordou com um certo ar de tristeza: no horizonte, de certo modo dissuasórias, algumas ameaças de chuva, com temperaturas pouco entusiasmantes, para a época do ano em que nos encontramos; mas o sol irrompeu pouco depois, como que cantando vitória sobre as nuvens, para que se tornasse mais amena a temperatura e mais vivo o verde onde cantavam os passarinhos do parque.
Recitado o hino de acção de graças a Deus por mais esta dádiva da Sua bondade infinita, deixei que a imaginação corresse um pouco para fora da casa e do parque: apeteceu-me subir a montanha com os discípulos e sentar-me ai, a um cantinho, para contemplar o rosto feliz de Jesus, aquele rosto cujo fascínio torna compreensíveis as palavras mais sublimes, jamais saídas da boca de um pregador: “Bem – aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus. Bem – aventurados os mansos… os que choram… os esfomeados de santidade…os misericordiosos… os puros de coração… os que fazem a paz… os perseguidos pelos contravalores da sociedade e da cultura… Bem – aventurados!”
E a gente fica a pensar, medindo a distância que separa este discurso divino de tudo quanto se ouve por aí: terei ouvido bem? Será este o verdadeiro caminho da felicidade?
De repente, aquele olhar profundo, fascinante, ergue-se para quem o escuta, como se o tivesse assaltado um pensamento súbito:
Já não era da sua felicidade que se tratava, mas da salvação do universo inteiro.
«Vós sois o sal da terra.
Mas se ele perder a força, com que há-de salgar-se? Não serve para nada, senão para ser lançado fora e pisado pelos homens.
Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte; nem se acende uma lâmpada para a colocar debaixo do alqueire, mas sobre o candelabro, onde brilha para todos os que estão em casa.
Assim deve brilhar a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai que está nos Céus».
Continuavam fascinantes os olhos, abrindo-se para uma profundidade inatingível, mas as palavras soavam quase como tiros de canhão: veio-me a tentação de fugir, porque achei que esses olhos já não se fixavam em mim, pobrezito, ali, a um canto, quase escondido, fora do grupo dos discípulos.
Fora do grupo dos discípulos, queria eu considerar-me; mas a certa altura, pareceu-me que já não havia, nem discípulos, nem montanha, nem paisagem que me distraísse: havia só aquele olhar divino, contemplando-me com uma ternura infinita, ainda que ferindo-me os ouvidos com aquilo de ser sal da terra e luz do mundo.
Apesar de… ia eu a dizer, como quem se desculpa: apesar da idade, das fragilidades que a cada momento precisam de ajuda, do socorro de profissionais e amigos?
Ia a dizer apesar de… sim, ia eu a dizer, como quem se desculpa.
Não, meu amigo!
Não apesar disso, mas com isso: com o peso dos teus anos, a humilhação das tuas limitações, os sonhos e os projectos que não passaram disso! Com as tuas dores, físicas e morais; mas sobretudo com a prontidão com que te dispões a receber a ajuda dos que cuidam de ti… para que tu, eles e Eu continuemos, cada qual no seu papel, com muito amor, porque só isso dá valor à vida, a tornar melhor este pobre o mundo, para reconstruir o qual, Eu me fiz igual a vós.
Desapareceu tudo à minha volta!
Sozinho, com os meus fantasmas, mas sentido sobre mim essa infinita ternura do olhar de Jesus, com a Sua felicidade insondável, reabri o Evangelho, li e reli os primeiros dezasseis versículos do capítulo quinto de São Mateus: e quando entrou a funcionária que vinha ajudar-me a calçar as meias elásticas, porque as artroses me não permitem fazê-lo sozinho, pareceu-me ver de novo esse olhar de felicidade que fascinava os discípulos. Era Ele a dizer-me: esta é também a tua hora.