«Orai assim: Pai nosso, que estais nos Céus, (…) O pão nosso de cada dia nos dai hoje»
Estava aqui a reflectir, perguntando-me com grande concentração qual seria o melhor modo de traduzir o termo grego “epioúsin” (latim “supersubstantialem”), com que Jesus classifica o pão que nos manda pedir ao Pai, e saltou-me à mente, quase como uma censura do Espírito Santo, o comentário de São Cipriano – um Padre da Igreja de meados do século III – que, a meu ver, mostra como a tradição cristã já absorvera a ligação do nosso de toda a petição com a ideia da suficiência do pão para cada dia.
Pão diário, que, segundo São Cipriano, faz pensar no maná, alimento dos caminhantes do deserto, que, exceptuando a véspera do sábado, não deviam recolher senão o suficiente para cada dia.
O maná, cuja relação com o mistério eucarístico se divisa precisamente no discurso do Pão da vida, quando Jesus afirma claramente que é Ele o verdadeiro pão vindo do Céu, dádiva exclusiva do Pai aos filhos que o procuram; Ele, que dará a sua carne a comer e o seu sangue a beber (Cfr Jo 6, 32-59).
E recordando tantas referências, directas e indirectas – incluindo as que me ficaram do ambiente em que nasci e fui criado, onde se repetia muitas vezes que não devíamos querer mais que o “pão de cada dia”, a terra e o trabalho que exigia para produzir aquilo sem o qual a vida em casa não tinha qualquer sentido – isso, junto a comentários mais ou menos felizes, de santos, teólogos e pastores, o meu espírito andou por momentos, do deserto para Cafarnaum e daqui para os altares das nossas igrejas.
Depois, reli e rezei de novo a única oração que Jesus ensinou aos discípulos, quando lhes recomendava que evitassem o palavreado dos pagãos:
“Pai nosso, que estais nos Céus, santificado seja o vosso nome; venha a nós o vosso reino; seja feita a vossa vontade assim na terra como no Céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje; perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido; e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal” (Mt 6, 9-13).
Duas coisas me prenderam a atenção, antes e depois de repetir, por cinco vezes – tantas quantas marcam o terço do Rosário que tive em mãos no início desta tarde – duas coisas me prendem a atenção:
Primeiro, tudo o que se pede é legítimo porque tira a sua verdade da própria verdade de Deus, sem o qual, como afirma de vários modos Santo Agostinho, tudo o que é, é porque procede do Ser supremo.
Aliás, Jesus não deixa de fora, como objecto de petição ao Pai, nada de essencial à existência humana, que só será verdadeiramente humana na relação com Deus.
Em segundo lugar – o que é mais evidente, mas que, talvez por isso, valorizamos tão pouco -, é que, na fórmula do Evangelho, a única que, apesar das ligeiras diferenças entre Mateus e Lucas, ninguém pede nada em primeira pessoa.
Assim se nos ensina que, em oração agradável a Deus, nenhum pedinte será um indivíduo isolado, apresentando ao Pai as suas súplicas: podemos dizer que, com a sua estrutura, o Pai nosso, além do seu aspecto litúrgico, é também a síntese mais perfeita da vida cristã, transformando-se em compromisso e texto de exame.
E está explicado o sentido do título que se pôs a estas reflexões:
O QUE PEDIR A DEUS PARA QUEM.
Pedir, com a maior fé de que se é capaz, tudo e só o que se integra nas indicações de Jesus:
A glória de Deus: que é a sua honra – “o temor de Deus”, de que falam o textos sagrados e que nada tem a ver como o medo do escravo diante do seu senhor – a glória de Deus como critério último das nossa opções; aquele “faça-se”, “cumpra-se”, na sua amplitude assumido pela humanidade , em Maria, no mistério da Encarnação, a realização concreta, no coração dos homens, da redenção, a recuperação da dignidade criatural, perdida no Paraíso.
Para isto pedimos o pão como realidade e como figura: o pão, “fruto da terra e do trabalho do homem”, alimento da vida corporal e comunhão, através do sacramento, com Deus e a humanidade inteira: por isso pedimos em segunda pessoa, porque que nenhum de nós é uma ilha isolada; e só comendo deste pão comum e em comunhão, se acendem os luzeiros e se constroem as pontes que nos salvam como pessoas.
O Pão, que é Cristo, com a sua palavra e o seu corpo, única dádiva para as fomes da humanidade, fomes que as utopias ateias tornam cada vez mais vastas e cruéis.
E pedimos também em segunda pessoa, perdão e defesa do mal, porque são de todos os pecados de cada um, e ninguém está suficientemente amuralhado contra o mal, que, seguindo o aviso do Espírito Santo, ronda à nossa volta como um leão procurando a quem devorar (Cfr 1 Ped 5, 8-10).
Falta que reparemos bem no significado da recitação do Pai nosso no entro da Oração Eucarística, precisamente quando nos preparamos para a comunhão sacramental. Recitação que talvez não se tenha melhorado, quando deixou de ser feita apenas pelo sacerdote celebrante, como voz de toda a comunidade crente.