Ouvi um dia um sacerdote santo – já nessa altura considerávamos verdadeiro o que viria a ser reconhecido pela Igreja, canonizando-o poucos anos após a sua partida para o Pai –ouvi-o, perante uma numerosa assembleia de pessoas de diferentes condições e idades, crianças, jovens, casados e solteiros, que o escutavam com interesse, ouvindo-o falar da importância das coisas pequenas e dos pormenores na vida de oração, utilizando como tema de fundo, a ideia de que no amor tudo tem a dimensão desse amor: se amas muito, o pequeno torna-se grande; se amas pouco, o grande torna-se pequeno.
Não cito as palavras exactas do Santo, e compreendo que possais entender o contrário do que todos, naquela sala, entendíamos perfeitamente e interiorizávamos com a ajuda dos exemplos, carregados de humor, com que ele ilustrava a sua pregação.
Afinal, o que nos queria dizer o homem de Deus, era o que os autores espirituais sempre ensinaram, aliás, ilustrando o Evangelho, que lemos tantas vezes de modo superficial e, não raro, dando volta ao que nos diz o Espírito Santo.
Em rigor, do que se trata é de examinar a paixão por Jesus Cristo – e podia falar de todas as boas paixões da vida – à luz da força com que penetra a totalidade da nossa existência.
A dureza condenatória da hipérbole – mais uma – com que o divino Mestre pinta o extremo cuidado dos seus ouvintes – digamos, os fariseus mais zelosos pelo cumprimento da Lei – em pormenores que parecem sem importância, a dureza desta hipérbole, segundo me parece, está mais no engolir o camelo do que no coar o mosquito.
Porque ninguém nega que, em qualquer sector da vida humana, quem respeita as coisas grandes, pelo seu valor real e não pela cegueira de uma qualquer ideologia, terá bom senso e luz suficiente, que o ajudará a verificar como, para essas grandes coisas, são necessárias as pequenas.
“Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque pagais o dízimo da hortelã, do funcho e do cominho, mas omitis as coisas mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade. Devíeis praticar estas coisas, sem omitir as outras. Guias cegos! Coais o mosquito e engolis o camelo”.
Coar o mosquito e engolir o camelo.
Voltamos mais uma vez ao essencial: se, como diz o cântico que tantos gostam de repetir, o mundo morre de frio, porque as pessoas não têm amor, não posso deixar que se apague o brasido que me resta, nem a centelha que tenho nas mãos, por pequena que seja, até porque não sei se alguma vez terei uma acendalha mais à medida das lareiras apagadas com que topo, ao longo do dia a dia.
O segredo é amar, também se diz, a torto e a direito.
Talvez nos falte perguntar mais vezes a nós próprios, que estamos a fazer desse segredo: porque na civilização vazia em que vivemos, com multidões de atletas tentando cada qual ganhar mais uns milímetros no salto da mediocridade, se não cuidamos os pormenores, que proveito virá ao mundo do esforço da nossa corrida?
E, já que temos como fundo a hipérbole de Jesus, condenando um dos aspectos mais salientes do espírito farisaico – peço perdão do adjectivo, a São Paulo e a tantos fariseus que, como ele, antes e depois dele, reconheceram e reconhecem Jesus como o Messias prometido – já que temos como fundo destas reflexões aquela hipérbole, penso que ninguém me levará a mal que insista na necessidade de nós, os crentes, individualmente e como comunidade, nos examinarmos muito a sério, se não andamos a coar mosquitos e a engolir camelos.
Não esquecendo, evidentemente, que o mais trágico da existência cristã não está no coar isto ou engolir aquilo: nada mais fácil do que transformar os camelos em mosquitos e os mosquitos em camelos.
Talvez não tenhamos ainda reparado com suficiente perspicácia que o que chocava os ouvintes de Jesus e inquietava sobremaneira as autoridades religiosas de Jerusalém, não era a novidade da sua doutrina, nem sequer o que contrariava os costumes dos seus contemporâneos: o que inquietava essas autoridades era que Ele se identificava com o próprio Legislador, frisando o sentido real da expressão “filho de Deus”, tão arreigada na tradição bíblica e que é tomada como razão para a sua condenação à morte.
De igual modo, não foi por contrariarem qualquer pratica religiosa, que foram perseguidos os Apóstolos e as primeiras gerações cristãs, dentro e fora da Palestina; mas por terem o arrojo de afirmar que esse Jesus, que todos sabiam ter morrido, como um criminoso de baixa condição, condenado pelo poder civil, cedendo cobardemente ao poder religioso, estava vivo.
Mosquitos ou camelos, todos nós os coamos ou engolimos, se perdemos de vista que o único que não se engana é Deus, que não condena senão as práticas que, mesmo quando parecem boas, impedem as pessoas de O seguirem até à cruz, onde Ele morreu para não matar.
E será preciso também não cometer o erro dos que O levaram à morte: ou seja, confundir a unidade da fé com a unicidade das práticas.