O MEDO

Desde as origens: que força teve o medo da morte na primeira luta do Homem com o Mal, figurado naquela serpente que lhe apontava o fruto proibido como a grande fonte da sua própria divinização?
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Diz um antigo ditado português: “o medo é que guarda a vinha”!

Certamente, ditos como este não nascem e crescem com raízes tão profundas na fala comum da comunidade sem uma longa série de experiências que os confirmem.

Acontece, porém, que quanto ao medo guardar a vinha, se nos pomos a observar, com olhos de ver, o que se passa à nossa volta, ficamos com a impressão de que a força dissuasora do medo não será assim tão universal.

Aliás, pensando bem, todos estamos convencidos de que, mesmo excluindo os casos patológicos, muita gente só não rouba pela força de princípios morais, alguns de tal maneira enraizados no comum das mentes, que se tornam quase instintivos.

Desde as origens: que força teve o medo da morte na primeira luta do Homem com o Mal, figurado naquela serpente que lhe apontava o fruto proibido como a grande fonte da sua própria divinização?

Não, não tiveram medo da morte os nossos primeiros pais, perante a perspectiva de se tornarem senhores absolutos do que não podiam ter senão como dom gratuito de Deus, que, de repente lhes pareceu invejoso, ciumento da própria grandeza. Assim lhes pareceu que podiam correr todos os riscos, para alcançar o que, segundo creram, Deus guardava ciosamente para Si.

Perante isto, como queríamos nós que o medo se tornasse uma arma universalmente eficaz contra a tentação de se apoderar do alheio?

Não. Não há medo que detenha o ladrão que, de qualquer modo, se deixa fascinar pelo alheio.

Aqui, medo, ladrão, fascínio e alheio, palavras extremamente polissémicas, podem guardar tudo o que quisermos incluir no respectivo campo semântico, para demonstrar que em caso nenhum o medo serve para impedir o Mal de exercer o domínio que quis tornar definitivo com a mentira do Paraíso. Mentira que repete constantemente, enganando muitas vezes os melhores espíritos.

Vêm-me estes pensamentos, quando releio o trecho da I Carta de São João que a Liturgia nos apresenta hoje, escutando, ao mesmo tempo, o comentário que dela faz Santo Agostinho.

Diz o Discípulo Amado: “Deus é amor: quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele. Nisto se realiza a perfeição do amor de Deus em nós, porque somos neste mundo como é Jesus e assim temos plena confiança no dia do juízo. No amor não há temor; o amor que é perfeito expulsa o temor, porque o temor supõe um castigo. Quem teme não é perfeito no amor”.

“A este respeito diz Santo Agostinho:

Porque Deus é amor. Irmãos, que mais se poderia dizer? Ainda que se não dissesse mais nada em louvor do amor, em todas as páginas desta Carta, ainda que absolutamente mais nada se tivesse dito, nas restantes páginas da Escritura, se apenas tivéssemos ouvido isto da boca do Espírito Santo, porque Deus é amor, não deveríamos procurar mais nada”.

Pra nos não enganarmos na leitura, tanto de São João como de Santo Agostinho, é necessário ter presente que a palavra “amor”, no uso corrente da língua portuguesa, está tão carregada de conotações, que, em vez de traduzir, quase esconde o sentido mais profundo da palavra “dilectio” (agápe).

Não seria preciso dizer mais nada, se não fosse tão claro que a leitura destes textos é comummente interpretada em sentido redutor, quando não mesmo em contradição com o seu valor original.

Voltando ao ditado popular: não é verdade que o medo guarde a vinha, nem que seja alguma vez força capaz de levar o homem a qualquer gesto demonstrativo da sua dignidade, da sua condição de criatura amada por Deus, não pelo que vale, mas pelo que é.

Diz São João: “No amor não há temor; o amor que é perfeito expulsa o temor, porque o temor supõe um castigo”.

Volto-me um pouco mais sobre mim mesmo, olho para aquilo que me move, desde os primeiros instantes do dia e reparo no peso que, apesar de tanta emenda, tantos actos de rectificação das motivações, o peso que tem o medo, nas decisões que tomo. E é a partir daí, não propriamente da correcção dos pensamentos ou dos actos, que meço o caminho que ainda me falta per correr para a reconstrução do meu ser humano e divino, iniciada no Baptismo. Porque a santidade, ou, se quisermos, a “perfeição da caridade”, como lhe chamou o Concílio, dizendo que todos somos chamados a ela, consiste essencialmente nisso: ir a pouco e pouco eliminando das nossas decisões todos os resquícios do medo, que é incompatível com o amor de Deus.

“Tende confiança. Sou Eu, não temais”. Lemos hoje em São Marcos.

Aperta-me um pouco o coração o lembrar-me que esta frase, que será talvez a que mais se repete ao longo de toda a Sagrada Escritura, tem tão pouca influência na minha vida real, concreta, de cada momento.

Medo? Só o que sentiu Jesus no Getsémani e que não tem nada a ver com os nossos medos, a não ser na medida em que os assumiu para transformá-los no Seu.

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