De madrugada, muito de madrugada, enquanto o sol, como quem acorda estremunhado, não consegue quebrar o escuro, que se apaga cada vez mais tarde, eu, aproveitando o silêncio que ainda envolve a minha Betânia, para evitar distracções esterilizantes, tento pôr os ouvidos à escuta, enquanto os olhos galgam fronteiras e décadas até esse campo de extermínio, que, para seu e nosso mal, continua prisioneiro de um monopólio referencial ideológico que nos impede de tirar dele as lições de vida que contém pra a humanidade inteira.
Porque não há desastre ou tragédia humana, por mortal que pareça, que não contenha lições de vida, exactamente na proporção directa da sua desumanidade.
Penso não chocar ninguém, se disser que a fé no Deus em que acredito – e não há outro – me diz precisamente que temos de prestar mais atenção aos sinais dos homens, não para condenar seja quem for, mas para ver – porque se trata de sinais visíveis – o que acontece sempre que o homem se esquece do amor gratuito de Deus, sem o qual não existiria nada do que existe, e que não vale a penas escondermo-nos quando vem à nossa procura, no meio das ruínas que produzimos, para do meio delas nos erguer.
É por isso que me parece de todo inadequado, alheio à coerência da fé, um crente parar diante dos montões de ruínas que, ao longe e ao perto, ontem e hoje, enegrecem os espaços do nosso viver, erguendo o dedo para apontar culpas, quando sabemos que Deus está lá pra transformar a morte em fonte de vida, exigindo de cada um de nós solidariedade com esse amor louco, que morre para não matar.
Deixo o resto e salto para Auschwitz, na Polónia, ocupada pelo exército estrangeiro, graças a um acordo secreto entre a Alemanha e a Rússia Soviética. 14 de Agosto de 1941: aproxima-se o momento de lançar no forno crematório mais um grupo de vítimas do regime.
Erradamente, quase todos pensam que se trata de mais um grupo de judeus; não sei se tal pensamento se deve apenas à ignorância se também a uma intencional má fé na informação: porque se desconhecem centenas de milhar de outras etnias e religiões, como ciganos e cidadãos cristãos, tanto católicos, como protestantes.
Aí está mais um grupo: dez prisioneiros escolhidos ao acaso, para vingar a fuga de um dos que trabalhavam no mesmo sector. Entre eles, um pobre homem, chefe de família, que assim perdia a oportunidade de voltar a ver os entes queridos. Padre Maximiliano, que não é judeu nem cigano, mas vítima como todos os outros, oferece-se para morrer em seu lugar, ajudando os companheiros de infortúnio a ver o que lhes parecia tão opaco: Deus, amor infinito, não admite nunca que a morte seja a última palavra.
Aos 66 anos e poucos meses, na véspera da Assunção da Virgem Santa Maria, pregava assim o seu último sermão de pastor, que fora missionário e publicista, apaixonado pela devoção e culto da Mãe de Jesus, cujo nome terá sido a última palavra que pronunciou.
Como são as coisas: Maria ao aceitar a missão de conceber, dar à luz e alimentar o Verbo Encarnado, pronuncia a única palavra do seu discurso que Jesus utiliza na oração que nos ensinou e que Ele próprio terá pronunciado muitas vezes nos seus diálogos íntimos com o Pai: gr “genethéto tò thélmá sou”/ lat “fiat (adimpleatur/complete-se) voluntas tua”.
Segundo a etimologia do termo grego, o que se pede a Deus é que se realize o seu projecto divino de salvação: trata-se mais da dinâmica salvífica, interna dos factos, do que de alguma acção externa, como se a vontade de Deus fosse o mal que nos fazem e não o bem que sempre dele tira a Providência.
Da resposta de Maria, na Anunciação – “faça-se em mim segundo a tua palavra” -, ao pedido de Jesus Cristo, no Horto – “faça-se a tua vontade e não a minha” – à oração que Ele nos ensinou, e nós repetimos tantas vezes, em particular em comum – “Pai nosso… seja feita a vossa vontade -, o que fundamentalmente se pede é que, aconteça o que acontecer, o plano divino da criação, como se exprime no Génesis (1, 26-31), se torne nosso e o amemos com o amor do próprio Criador.
É por isso que os autores espirituais insistem que não devemos apenas resignar-nos com a vontade de Deus. Temos de passar da resignação ao amor, para não sermos escravos, mas amigos.
Amar a vontade de Deus! Claro. Não pode ter o sentido de amar o negativo, os erros e os crimes que entenebrecem este mundo, ao qual, sempre segundo a narrativa do Génesis, o Criador entregou como primeiro dom, a Luz (1, 3).
Para terminar com a memória de Auschwitz, que não existe só, nem principalmente como símbolo polémico de vitimismos étnicos e ideológicos, contemplo de novo Maximiliano Maria, pronunciando o nome que marcou a sua vida de crente, religioso, missionário e publicista, enquanto lhe aplicavam o soro mortífero, antes de o lançarem no forno das nossas iniquidades.
É evidente que não podia ser o amor dessas iniquidades, nem os efeitos letais daquele soro, nem tão pouco as nobilíssimas razões que o levavam à morte no lugar do seu companheiro de prisão, que enchiam de profundo sentido uma entrega tão radical àquilo que Jesus chamou o seu preceito (Cfr Jo 13, 34-35; 15,12-14). E, ao mesmo tempo confortavam um coração que se batera com tão grande fortaleza e constância, pelos valores que, aparentemente se sumiam nos horrores de uma guerra cujo absurdo ultrapassava em muito o de todas as guerras.
Animava-o a certeza do que os companheiros de prisão descobriram no seu gesto: Deus, amor infinito, não admite nunca que a morte seja a última palavra.