Na minha leitura diária do Novo Testamento, sem ter feito nada de especial para isso, acontece-me hoje cair sobre o capítulo quarto do Evangelho de João: é o capítulo que contém, segundo a linguagem joanina, o segundo dos setes sinais realizados por Jesus, enquanto palmilhava os caminhos dos homens.
Mas antes de falar desse sinal, que é a cura do filho do funcionário imperial, o evangelista oferece-nos o belíssimo episódio do encontro com a Samaritana, junto do Poço de Jacob, onde Jesus se detém, para descansar: estava de facto cansado, segundo o original grego, devido às dificuldades da caminhada.
A palavra portuguesa “cansaço” pode induzir-nos em erro, porque quase sempre passamos imediatamente da realidade física para a moral, imaginando que quem está cansado está também à beira de desistir. Foi por isso que hesitei sobre o termo a escolher para título destas reflexões: “cansaço” ou “fadiga”. “Fatigatus ex itinere”, diz o texto sagrado, na tradução latina.
O termo “fatigado” parece-me mais isento de conotações negativas, mas, talvez por isso mesmo, mais pobre que a palavra latina “fatigatus”.
Até que pude ler em São Josemaria Escrivá: “Relata S. João que, depois de uma longa caminhada, chegando Jesus ao poço de Sicar, manda os discípulos à cidade para comprarem alimentos; e ao ver aproximar-se a Samaritana, pede-lhe água, porque Ele não tinha com que tirá-la. O seu corpo fatigado pela longa caminhada sofre o cansaço e, outras vezes, para refazer energias, recorre ao sono. Generosidade do Senhor, que Se humilhou, que aceitou plenamente a condição humana, que não Se serve do seu poder divino para fugir das dificuldades ou do esforço! E assim nos ensina a ser fortes, a amar o trabalho, a nobreza humana e divina de saborear as consequências da entrega, da doação (“É Cristo que passa”, 61).
A fadiga produz o cansaço, que já não será apenas o desgaste físico, mas o que tal desgaste produz no todo da pessoa. E a pessoa procura recuperar as forças para continuar a tarefa. Não há desgaste moral, mas deficiência do instrumento físico; redução de forças, cuja recuperação é exigida pela fidelidade à tarefa.
De chofre, apetece-me pensar que, perante uma única fadiga, pode haver duas formas de cansaço, ou talvez dito de outra maneira, dois modos humanos de assumir essa fadiga: ou se lhe cede, ou se toma como ponto de partida para retomar a luta pelo cumprimento da missão: cansado mas crescendo de amor e entrega; por isso se descansa: Jesus, cansado da caminhada, senta-Se à beira do poço, do qual se aproxima uma mulher que, afinal, não pode descansar: ir tirar água do poço àquela hora (era cerca do meio-dia), não seria de pessoa que pudesse dispor do seu tempo como lhe parecesse melhor; e sabemos, pelo contexto, que se trataria de uma mulher duplamente explorada.
“Naquele tempo, chegou Jesus a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, junto da propriedade que Jacob tinha dado a seu filho José, onde estava o poço de Jacob. “Jesus, cansado da caminhada, sentou-Se à beira do poço. Era por volta do meio-dia. Veio uma mulher da Samaria para tirar água.”
São quarenta e dois versículos, num estilo tipicamente joanino, em que cada pormenor merece que nos detenhamos um pouco, porque todos contam para a compreensão global do episódio; um episódio cuja historicidade não se nega, mas que não se pode tomar como a de qualquer notícia de jornal.
Isto, que tem relevância em qualquer narrativa dos Sinópticos, torna-se particularmente importante, quando o texto que analisamos é tirado do quarto evangelho.
“Jesus, cansado da caminhada, sentou-Se à beira do poço. Era por volta do meio-dia. Veio uma mulher da Samaria para tirar água.”
Três pormenores da narração joanina que, pelo que sabemos do evangelho de João, não são referidos por mero acaso: Jesus está cansado, é por volta do meio-dia, uma mulher vem tirar água do poço.
Jesus está cansado: é o cansaço de Deus, que Se faz homem, para curar os cansaços do homem.
A este cansaço de Deus se refere Santo Agostinho com a beleza e profundidade que conhecemos em tantos textos seus. Só lamentamos que grande parte dessa beleza se perca com a tradução:
“Já começam os mistérios. Pois não é em vão que se cansa Jesus, não é em vão que se cansa a força de Deus. Encontramos um Jesus forte e encontramos um Jesus fraco. A força de Cristo criou-te, a fraqueza de Cristo recriou-te. Formou-nos com a sua força, procurou-nos com a sua fraqueza”.
Santo Agostinho está bem consciente de que, a nível da fé, criação e redenção são apenas dois aspectos do mesmo mistério: o mistério da nossa condição divina; divina pela origem, divina pelo remédio que nos salva da ruína introduzida pelo pecado. Digamos, em termos mais profundos e abrangentes, pelo modo como somos arrancados à tirania das vitórias do Mal sobre a nossa fraqueza. Por isso diz: “A força de Cristo criou-te, a fraqueza de Cristo recriou-te”.
Acreditar em Cristo, se não estou em erro, é acolher todo este mistério: um Deus que Se ocupa do homem, de tal modo que não Se contentou em criá-lo; mas quis fazer-Se homem como ele, cansar-Se por ele, para salvá-lo.