“Entra no teu quarto, fecha a porta e ora a teu Pai em segredo”.
Material por material, não adiantaria muito fazer a troca.
Ou, se reparamos na leitura que certas pessoas fazem deste versículo de São Mateus, talvez pudéssemos até dizer que, em determinadas circunstâncias, trocar a rua pelo quarto de porta fechada, além de tornar-se particularmente chocante, seria ainda mais hipócrita do que ficar de pé, no meio dos outros.
E ainda: se nos ficamos no nível da casuística, não faltarão circunstâncias em que se poderá fazer oração, não propriamente com a hipocrisia, porque esta, em qualquer caso, tema a malícia da mentira, não com a hipocrisia, mas com o esforço necessário para não perturbar os outros; o que tanto pode acontecer quando se deixa vazio o lugar que se devia ocupar, como quando se ocupa sem a devida dignidade.
Ou ainda, Deus me perdoe, para enganar aqueles que São Paulo, com uma compreensão que poucos sabem ver, considera, pela sua fragilidade, dignos de serem defendidos de tais enganos.
Há quem responda, quanto a mim, com demasiada pressa, que assim… assim é melhor não ir. Ouve-se isto com larga frequência a respeito da participação nos actos de piedade comunitária, nomeadamente na celebração da Eucaristia. E as pessoas não se dão conta de que um “não”, ou corresponde a um “sim” a algo superior, ou não será nunca bom, e muito menos melhor que aquilo que se omite.
Seja como for, relativamente ao texto do Evangelho, encontramo-nos ainda no chamado Sermão da Montanha, com os discursos de Jesus sobre a sua autoridade messiânica, que aplica na abertura dos caminhos por onde todos recuperarão o sentido mais profundo da lei divina.
A parte que se lê hoje, frisa a necessidade de radicar no coração – no íntimo mais íntimo de cada um de nós – tudo quanto pensamos, dizemos ou fazemos, sob pena de isso não ser autenticamente humano e, por conseguinte, não agradar a Deus, que para isso nos deu a capacidade de conhecer e amar.
Fala-se especialmente da oração, algo tão fundamental e característico da vida humana, que Jesus se dispensa de referir a sua necessidade, para passar imediatamente à indicação das qualidades que deve ter para corresponder à novidade do reino messiânico.
Alguém diz que aqui o divino Mestre nos dá as três colunas do existir específico do discípulo: a esmola, o jejum e a oração.
É um ponto de vista que não me compete a mim discutir, nem sequer comentar; só me parece que corremos o risco de autonomizar aspectos da vida cristã que, embora diferentes, têm uma relação de dependência cujo laço absolutamente necessário será a oração.
Por isso, considerando tudo quanto se pode englobar na esmola e no jejum, gostaria de juntar-lhe a bela e profunda a análise de santo Agostinho, ao terminar o sermão que pregou comentando o salmo 92(93):
“Se deres o pão com desagrado, perdes o pão e o mérito.
Procede então de modo que aquele que vê o interior, ainda quando falas, diga: “aqui me tens”.
Quão rapidamente são acolhidas as orações de quem procede rectamente!
E esta é a justiça do homem, na vida presente: o jejum, a esmola e a oração.
Queres que a tua oração voe até Deus?
Dá-lhe duas asas: o jejum e a esmola.
Sejamos tais que nos encontre seguros a luz de Deus e a verdade de Deus, quando nos vier libertar da morte Aquele que já sofreu a morte por nós. Amen” (En. in Ps 92, .
“Teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a sua recompensa”!
Podemos dizer que esta frase, com diversas variantes, constitui como que o fio condutor de toda a primeira parte deste capítulo (18 versículos de 34), que inclui o Pai nosso e uma última referência ao jejum, a centrar-se no coração, purificado com o perdão das faltas do próximo.
Vai-se da esmola ao jejum, com a oração de um coração pacificado pelo perdão dos pecados próprios e alheios; este será o oculto, o quadro secreto onde Deus nos espera com a recompensa que merece, não o que fizemos, mas o que fizemos por Ele e com Ele.
“Entra no teu quarto, fecha a porta e ora a teu Pai em segredo”.
O meu quarto, com as portas fechadas, será o meu coração, onde não deixo entrar nada que me possa desviar do olhar divino: de Deus que me vê, da minha alma, que se deixa iluminar pela luz da fé, com as virtudes teologais: Fé, Esperança e Caridade.
E este quarto de portas fechadas não pode ser um espaço isolado no edifício, sempre em construção, que tem de ser a minha existência cristã.