Jericó era uma grande cidade, ali, no cruzamento de diferentes vias entre as várias regiões do fértil vale do Jordão, incluindo os comerciantes que desciam do deserto com toda a espécie de mercadorias, incluindo pessoas… que também se vendiam e compravam, como hoje, ainda que com menos hipocrisia.
À beira do caminho estava um cego que não tinha dinheiro para comprar e pedia esmola – etimologicamente, um gesto de misericórdia – que o ajudasse a viver.
De quanto conhecia e imaginava que existia no mundo, chegava-lhe apenas o ruído sem alma, e algum desses gestos de misericórdia, que não era suficiente para poder abandonar a quela fome e aquela solidão.
Até que um dia passou alguém que se interessou por ele, ouviu os seus gritos e mandou-o chamar: nunca ninguém lhe tinha assim oferecido a esmola de um tempo e um espaço para falar do que lhe ia na alma; por isso, diz o texto sagrado, “atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus”; Jesus, que lhe pergunta o que quer, porque dava-se bem conta de que ele pedia mais do que a esmola de um pedaço de pão; e, perante tal pergunta, ele atreveu-se a pedir: Mestre, faz que eu veja!
Fazei que eu veja, Senhor, porque me assalta o medo de viver num mundo que parece cada vez mais mergulhado na tragédia, porque cada vez mais longe de Vós.
Fazei que eu veja que não é assim! Que tudo quanto nos prometestes ao longo da história se cumpriu e se cumpre, nos milhões de homens e mulheres, alguns mesmo sem Vos conhecer ou conhecendo-Vos mal, amam com o Vosso Amor e, comoVós morrem de muitas mortes para que no que deles depende, se reduzam os crimes de homicídio.
Faz-me um bem imenso reler, ainda que num português demasiado pobre, alguns dos hinos que cantei e ouvi cantar, dezenas, se não centenas de vezes, em momentos que, por Vossa Bondade infinita, serviam a fé, que se emocionava com a junção de três sinais da Vossa Beleza infinita: o conteúdo, as palavras e a música.
“Derramai, ó Céus, e as nuvens chovam o Justo. Que se abra a terra e brote o Salvador” (Is 45, !
“Porque isto diz o SENHOR: «Soltai gritos de júbilo por Jacob. Aclamai a primeira das nações! Fazei ressoar louvores, exclamando: «ó SENHOR salva o teu povo, o resto de Israel» (Jer 31, 7).
“Consolai, consolai o meu povo, é o vosso Deus quem o diz. Falai ao coração de Jerusalém e gritai-lhe:
«Terminou a vossa servidão, estão perdoados os vossos crimes, pois já recebeu da mão do SENHOR o dobro do castigo por todos os seus pecados»” (Is 40, 1-2)
Retomo e leio, melhor, procuro rezar mais uma vez o texto de Jeremias:”
“Eis o que diz o Senhor: «Soltai brados de alegria por causa de Jacob, enaltecei a primeira das nações. Fazei ouvir os vossos louvores e proclamai: ‘O Senhor salvou o seu povo, o resto de Israel’.
Vou trazê-los das terras do Norte e reuni-los dos confins do mundo. Entre eles vêm o cego e o coxo, a mulher que vai ser mãe e a que já deu à luz. É uma grande multidão que regressa. Eles partiram com lágrimas nos olhos, e Eu vou trazê-los no meio de consolações. Levá-los-ei às águas correntes, por caminho plano em que não tropecem.
Porque Eu sou um Pai para Israel e Efraim é o meu primogénito»” (Jer 31, 7-9).
E fico a pensar em duas coisas absolutamente contraditórias; dos que não sabem ler a Sagrada escritura, gritam aos sete ventos, tanto os que dizem que nada disto se cumpriu, como os que lutam ou tentam justificar a luta por que, com base no absurdo de não sei que direitos históricos, se tornem realidade viva, numa dimensão puramente terrena, com fronteiras desenhadas pelo estilete das ambições humanas, o mundo supostamente prometido pelo profeta.
Mas há os que sabem e encarnam pela fé, que Deus, como dizia aquele antigo formulário do catecismo, não pode enganar-se nem enganar-nos; os que depois da cura daquela cegueira que amarfanhava o pedinte de Jericó, vêem para além do visível: o mundo está cheio de viajantes que escutam os gemidos do sofrimento alheio e interrompem a marcha para dar ao irmão que sofre, o tempo e o espaço que lhe falta para sentir-se pessoa, objecto e sujeito da única fonte de felicidade que existe: o “ágape”, o AMOR, em que ninguém se sente explorado nem tomado como despojo de uma qualquer guerra.
O mundo está cheio destes viajantes atentos, que partilham generosamente o seu espaço e o seu tempo.
É isso que me conforta e atormenta ao mesmo tempo: conforta-me porque são um sinal claro de que as promessas de Deus se cumprem; mas atormenta-me, porque nisso eu vejo que se reduziriam drasticamente as tragédias que perturbam a história, se nós os crentes, não nos limitássemos tantas vezes a passar calmamente pela estrada de Jericó, não escutando os gritos da humanidade desprezada, humilhada, tantas vezes esmagada pelos ódios que nós próprios, consciente ou inconscientemente, atiçamos de todas as maneiras.
– Virgem santa Maria, Senhora da Consolação, intercedei por nós!
(Pensado e escrito em Fátima, a partir dos textos de domingo, 27 de Setembro, e publicado a 28 do mesmo mês e ano)