Memórias da infância

Na minha aldeia, onde nasci e cresci até bem entrado na adolescência, que era, pelo menos na sua estrutura sócio – cultural, profundamente cristã, não se falava do destino, mas ia-se dizendo, quase no tom de quem fornecia a chave – mestra para abrir todas as portas que davam para o significado mais profundo dos mistérios da vida: tinha de ser… estava destinado, estava escrito, não havia volta a dar-lhe.
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Pace, pace, mio Dio!
Cruda sventura
M’astringe, ahimé, a languir;
Come il dì primo
Da tant’anni dura
Profondo il mio soffrir.

É a parte final de A Força do Destino: quase em surdina, chegam-me, vindos de longe, os ecos de Leonora, pela voz inconfundível de Renata Tebaldi:

Paz, meu Deus, paz! / Cruel desventura,/ Me força, ai de mim, a esmorecer!/Como no primeiro dia, /Há muitos anos dura, /Profundo, o meu sofrer!

A seus pés, quase como Édipo desdobrado, Álvaro e Carlos morrem… ia dizer por ela, mas não: morrem por causa dela, que acaba por morrer também. Um fim trágico, ao gosto do melhor Verdi.

Aqui ninguém morre por ninguém; e esse é o aspecto mais negativo da tragédia.

Deu-se á fábula – a estória, como preferem certos críticos literários – o nome de “A Força do Destino”. A força de um agente implacável ao qual, na cultura clássica greco-latina, nem os deuses escapavam.

Acabou-se a música, e eu fiquei por momentos a pensar como essa ideia absolutamente incompatível com a fé num Ceus criador e redentor, anda por aí, com muitos disfarces, mas inexplicavelmente persistente.

Na minha aldeia, onde nasci e cresci até bem entrado na adolescência, que era, pelo menos na sua estrutura sócio – cultural, profundamente cristã, não se falava do destino, mas ia-se dizendo, quase no tom de quem fornecia a chave – mestra para abrir todas as portas que davam para o significado mais profundo dos mistérios da vida: tinha de ser… estava destinado, estava escrito, não havia volta a dar-lhe.

Da “moira” dos gregos, ao “fado” português, passando pelo “fatum”, dos latinos, quase só mudaram as palavras. Sempre se fala de algo que nos ultrapassa, uma força invencível que arrasta a criatura humana, para o bem ou para o mal, contra a sua vontade. As histórias negativas ultrapassam em muito as positivas, donde o significado mais comum de termos como “fatal” e “fatalidade”, derivados de “fatum”, que, originariamente não tinha sempre um significado negativo, como o não tinha o termo grego “moira”.

Foi uma enorme fatalidade, a tragédia do Luizito!

Era o mais ladino dos miúdos que frequentavam a catequese paroquial, no Verão daquele ano, a menos de meio do século.

Muitas vezes entrava em disputas tipo jogos radicais, como lhes chamaríamos hoje, e ganhava sempre. O que me causava calafrios era vê-lo trepar às árvores mais altas, como eram os pinheiros da Encosta, que, prestes a atingir os cem anos, não tinham entre as copas desafiantes, ramos que pudessem servir de apoio aos trepadores. Subir e descer tão rápido como o Luizito, ninguém se atrevia sequer a tentar.

Até que um dia… a gente nem sabe como aconteceu: sabemos apenas que alguém descobriu, no cimo do pinheiro, esguio, de copa redonda, um ninho, que, como todos os ninhos, na nossa meninice, tinha algo de fascinante, quase irresistível. E o Luizito, com incitamentos de vária ordem, em poucos minutos pôs-se lá em cima. E ia a pegar no ninho, para o atirar como troféu, quando, de repente, sem percebermos nada do que se passara, o vimos estatelado no chão, imóvel, banhado em sangue!

Ficámos sem voz, nem movimento… Alguns fugiram aterrorizados, gritando: O Luizito morreu! O Luizito morreu!

A minha memória, tão viva quanto ao que se passou nesta fatídica tarde, não guarda mais nada das horas que se seguiram.

Recordo-me que encontrei a mãe do Luisito, bastantes anos mais tarde, já com a minha cabeça cheia de teorias sobre a Providência e o acaso, que, como intuí, logo no primeiro instante, não me adiantariam de nada naquelas circunstâncias. Talvez algo sobre o perdão, acrescentando expressões teológicas às magras teorias que aprendera no catecismo.

A D. Silvina, era este o seu nome, não me pareceu muito mais velha, mas muito mais triste: apetecia-me dizer, de uma tristeza de morte, que acabava por quase inutilizar os visíveis cuidados que punha na sua apresentação: Estava viúva e sem filhos: depois do Luisito, nem Deus quisera nada com ela, disse com uma amargura, que só não me amachocou, porque eu começava a ter uma certa experiência de contactos com a dor humana.

Conversámos uns momentos, curtos, porque me faltavam as palavras e a ela disponibilidade para me ouvir.

Guardo dessa conversa a certeza que nunca mais me abandonou, ao longo de toda a minha vida: que só quando nos perdoamos a nós próprios, abrindo o coração à misericórdia divina, começamos a perceber o que significa perdoar aos outros. Por isso me apetece perguntar: será que lemos correctamente a última frase do Evangelho do domingo passado (Mt 18, 35)?

Retirado da página Facebook do autor

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Captura de ecrã 2024-04-17, às 12.19.04

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