À primeira vista, não temos aqui senão duas frases; reparando, porém, que pertencem às duas leituras desta quarta-feira, começamos a suspeitar de que, para além do aspecto formal, alguma coisa do respectivo conteúdo as une entre si. Será apenas o facto de numa se falar da “vida eterna” e a outra conter a afirmação “a tua fé te salvou”?
Antes de responder directamente à pergunta, recordo aquela conversa sobre aspectos do ritual das exéquias que, segundo o nosso parecer, não teriam sido revistos com autêntico rigor teológico.
Entrava nesta conversa a tradução da antífona “Libera me, Domine, a morte aeterna”, que muitos recordarão, não só pela beleza do seu conteúdo, mas também pelas composições musicais, algumas das mais fascinantes da nossa música clássica, que inspirou e que ainda hoje se executam em certos concertos.
A uma primeira abordagem, achávamos que não se deveria falar de morte eterna, quando todos sabemos que as pessoas, de facto, não morrem e, muito menos para sempre.
Não é que esteja errada a tradução: concluíamos apenas que podia induzir as pessoas em erro, já que o ambiente não se prestava, nem sobrava o tempo para explicar devidamente as coisas.
No fundo, porém, trata-se apenas de um dos muitos aspectos em que à catequese litúrgica da Igreja falta, por isto ou por aquilo, trabalho prévio ao bom aproveitamento das celebrações comunitárias.
Dando à expressão “morte eterna” o sentido mais comum das palavras – que é, infelizmente, o que acontece na maior parte dos casos – este pedido feito a um Deus que Se revela como um “Deus vivo, para os vivos” (Cfr Mt 22, 31-32)), torna-se totalmente absurdo.
Mas há outra perspectiva, que, além de confirmar a segurança do que na liturgia da Igreja, quanto ao uso, coincide com a sua própria história, obriga a uma releitura dos textos da Sagrada Escritura e da Tradição.
E começo por um texto inspirado, que raramente se cita na pregação, mas que pode servir de fundamento a muitos temas, alguns deles, em meu entender, demasiado ausentes das nossas catequeses:
Leio, a certa altura, no capítulo vinte do livro do Apocalipse:
“Então, a Morte e o Abismo foram lançados no lago de fogo. Este lago de fogo é a segunda morte. E todos os que não foram encontrados escritos no livro da Vida foram lançados no lago de fogo” (Apc 20, 14-15).
De um livro, cuja estrutura literária assenta precisamente num tecido de figuras, alegorias e imagens, não é fácil dar o significado real de cada uma delas; mas a interpretação destes dois versículos como uma referência à eternidade das penas do Inferno, pode dizer-se comum, entre os Padres e exegetas.
Retenho apenas a afirmação: “este lago de fogo é a segunda morte”; e passo a um texto de Santo Agostinho que talvez nos ajude a responder à primeira questão levantada pelas duas frases referidas no primeiro parágrafo destas reflexões:
“Acredita com uma fé decidia e firme que todas as coisas que, ao morrer, parecem esconder-se dos olhos dos homens, se salvarão, pela omnipotência de Deus.
Ele, quando quiser, regenerará, sem qualquer dúvida nem obstáculo, naturalmente só as que a sua justiça considerar dignas de ser regeneradas, para que os homens prestem conta das suas acções, precisamente nos corpos com que as realizaram e nos quais merecem, ou a transformação na incorruptibilidade celeste, como recompensa da sua piedade, ou o estado de corrupção do corpo, como castigo dos seus pecados, estado em que não se reduz com a morte, mas se destina a fornecer matéria para as dores eternas.
Foge, portanto, cm uma fé perseverante e uma forma de vida digna, foge irmão, daqueles tormentos em que nem os torturadores desistem, nem os torturados morrem.
Para estes últimos, é uma morte sem fim, não poder morrer nos tormentos” (De catechizandis rudibus 25, 46-47).
Pondo de lado qualquer outra discussão, parece claro que, para Santo Agostinho, há apenas uma “morte”, aquilo que os teólogos hoje explicam como o fim da dependência da matéria e do tempo, até que, como diz S. Paulo, Deus seja tudo em todos: aqui se situa o “regenerar-se” total… para a glória celeste, se a vida temporal foi uma vida de fé; para o tormento eterno, se não houve essa coerência com a fé.
É neste sentido que se pode dizer, quanto a mim com inteira propriedade, “livra-nos, Senhor, da morte eterna”.
Assim também, “herdeiros da vida eterna”, segundo o mesmo São Paulo, são apenas aqueles que vivem da fé, segundo a graça divina.
Por isso, Jesus, que curou dez leprosos, afinal, enquanto iam a caminho de cumprir um preceito legal que Ele lhes recordara, só ao que interrompeu a marcha para dar glória a Deus, disse: “Levanta-te e segue o teu caminho; a tua fé te salvou”.
Isso quererá talvez significar que a cura dos outros nove, por preciosa que tenha sido, só por si, não lhes trouxe a salvação.
Isto, ao contrário do que muitos poderão pensar, será a única perspectiva que salva integralmente a dignidade do corpo humano, que só o é, precisamente como sinal visível da pessoa.