O segundo dia das Jornadas Teológico-Pastorais da Diocese de Leiria-Fátima, após a oração da manhã, abriu com a pergunta “como fazer Deus entendível ao mundo de hoje?”. E terminou com uma nota de confiança de D. António Marto, colada às palavras do Papa Francisco, de que a “pastoral da misericórdia” haverá de operar a “revolução da ternura”.
Na primeira conferência, Pedro Valinho Gomes lembrou que aquela pergunta é de todos os tempos, desde a Igreja nascente, que em todos os tempos a resposta exige criatividade e que os frutos não se medem pelos resultados. Como ajuda à reflexão, apontou três tentações da pastoral da Igreja: 1. a autorreferência que a leva a centrar-se em si mesma e na proteção tradicionalista confundida com defesa e transmissão da tradição; 2. a “intenção atrevida do sucesso” que se mede em igrejas cheias, discursos muito aplaudidos, campanhas publicitárias que vendem com recurso a todas as tecnologias o produto “Jesus Cristo” e estatísticas convincentes em folhas de Excel; 3. a tentação de assumir o papel do herói, cuja vida e capacidades giram em torno de si mesmo, quando o objetivo é ser santo, que gira em torno de Deus. Três tentações que facilmente conduzem ao desespero, pela ausência de resultados e porque “o herói desespera quando se descobre insignificante”.
Sendo o Evangelho, não uma mensagem a comunicar, mas uma pessoa a apresentar para o encontro, sugeriu, então, “três linguagens do testemunho a que somos chamados”: 1. o anúncio que se acolhe como envio, pertencente a Outro, a Deus, do qual a testemunha se faz transparência apenas por “viver de tal forma que não faria sentido se Deus não existe”; 2. a simples presença junto dos outros, como sinal da própria presença de Deus que os ama; 3. o “azeramento”, ou despojamento de “armas e armaduras” que foram o segredo do insucesso de Golias. Numa frase: “é o dinamismo da incarnação que tem de ganhar forma no coração da Igreja”.
No painel da manhã, com André Pereira, Johnny Freire, Jacinta Pereira, António Luís e Armindo Castelão, apreciou-se como o quadro pastoral é uma harmonia feita de diversidades e complementaridades em caminho de maior integração e partilha. Partiu-se do laicado como vocação batismal comum a todos os filhos de Deus, mas com especificidades que não deixam de ser “radicalidade” no assumir o ser cristão em todos os ambientes do mundo. Outras radicalidades se encontram na vida consagrada, nas suas múltiplas formas, e nas novas formas de consagração comunitária ou pessoal, bem como no ministério ordenado dos diáconos e dos presbíteros. Nenhum ministério existe por si mesmo, nem para si mesmo, mas como forma concreta de viver e anunciar Deus. E mais do que a funcionalidade, importa descobrir a sua essência no contexto da vocação cristã, que vem de Deus e cuja resposta eficaz reside no “deixar-se conduzir e acreditar que, se Deus manda, há que ser otimista”, por Ele “não Se engana nem nos engana”.
À tarde, “o matrimónio frágil numa igreja de misericórdia” foi o tema abordado por Miguel Almeida, no contexto de um novo método de liderança eclesial “a que não estamos habituados e que tem levantado algumas questões, perplexidades e oposições”. O Papa Francisco recupera do Vaticano II uma eclesiologia que devolve a responsabilidade pastoral às Igrejas locais, “mais difícil, porque é mais fácil fazer o que nos mandam”. E aponta um novo método em que “o tempo é superior ao espaço” e “a realidade é superior à ideia”, bem como a linguagem da “misericórdia como forma da experiência cristã centrada no encontro com Cristo”, e uma nova abordagem pastoral que “coloca a pessoa no centro” e só depois considera o “caso” ou a lei. Quanto ao matrimónio e às “situações irregulares”, a abertura iniciada com o Concílio e o Papa João Paulo II é continuada pelo Papa Francisco com a compreensão da “fragilidade como incompletude, mais do que como irregularidade” e com as famílias a serem, não apenas objeto, mas também sujeito da pastoral. Também isso, hoje, é capítulo da História da Salvação, em que “Deus se faz presente em todos os tempos e da mesma forma”. E talvez este seja o tempo em que pede uma Igreja “mais próxima da origem”, de pequenas comunidades onde há mais vida.
O último painel das jornadas ousou antever o “horizonte de uma nova geografia eclesial” ou a “reorganização da ação pastoral”, com Manuel Armindo Janeiro, Júlio Martins e Pedro Ascenso. Mantém-se o mandamento original de ler os sinais do tempo presente, “profundamente”, para um discernimento pessoal e comunitário que faça o diálogo com o mundo “segundo a categoria da misericórdia”. É preciso aprofundar o discernimento conciliar de uma Igreja que se compreende como “povo, comunhão e caminho”, com as tónicas da alegria e da esperança, sublinhadas pelo Papa Francisco, que a coloquem “em saída” e “sem medo da surpresa”. Prioridades? As periferias de todas as pobrezas e marginalidades humanas, mesmo as “envergonhadas”, assumidas como missão por todos e em todas as comunidades. E também – todos – estarmos dispostos a “seguir novas pistas, os tais sinais de Deus que estão em todo o lado e em todos nós”. Os métodos podem ser vários, como o do Escutismo, mas… para “manter as coisas simples e não baralhar”, trata-se de voltar ao método de Jesus Cristo, que escuta, acompanha, ilumina, “está com” os seus discípulos e nunca desiste deles, de nós. E a última frase que se ouviu voltou a ser uma pergunta: “E nós, vamos lá?”
A encerrar, após a leitura de uma síntese destes dois dias, D. António Marto enalteceu a riqueza da reflexão partilhada nestas jornadas e apresentou alguns tópicos que considera fundamentais. Em primeiro lugar, o empenho de todos os cristãos e de todas as comunidades “na transmissão ou gestação da fé”, num tempo marcado pelo “eclipse da memória cristã dentro das famílias”. É necessário redescobrir como “narrar a fé cristã de maneira viva”, o que só acontecerá com o “contágio do testemunho de uma fé viva, alegre e convicta” e fazendo caminho com as pessoas nos seus “ritmos de vida hoje”. Há métodos novos a experimentar, como o “despertar da fé” aplicado a todas as idades, e outros a desenvolver, como os Cursos Alpha. Essencial será, também, cultivar como atitudes fundamentais a “escuta de Deus e das pessoas”, o acompanhamento e acolhimento das “expectativas de quem busca”, por pessoas que “sejam referência” e tenham formação para esse trabalho, o “anúncio em modalidades mais adequadas, envolventes, interativas e eficazes” e, por fim, a oferta de um “rosto de comunidade” que seja lugar da integração de todos.
Uma última referência do Bispo diocesano, a propósito da “nova geografia eclesial”, foi para a confiança no futuro. Certo de que “algumas coisas na Igreja só se fazem aos empurrões da história”, D. António Marto acredita que o caminho passará pelas “colaborações pastorais”, que não será “fusão de paróquias”, mas o assumir de um projeto pastoral comum por “paróquias que se abrem umas às outras” em comunhão missionária, o que é diferente da mera reorganização territorial. Este “relançamento de evangelização” implicará, igualmente, “novos ministérios”, como será o diaconado permanente que ainda não existe na Diocese. Para tudo isto, é preciso formar as pessoas e “há que dar tempo ao tempo”.
Nota final para a “pastoral da misericórdia”, como aponta o Papa Francisco, para a “revolução da ternura” a que é chamada a Igreja do nosso tempo, com “acento na confiança” e no “encontro de todos os homens sem exclusão”.
Luís Miguel Ferraz