Não, não é o Stabat Mater que neste momento toca o mais fundo do meu interior, com sentimentos tão complexos; o que toca o mais fundo meu interior – só não digo o mais íntimo do meu íntimo, como diria Santo Agostinho, porque não me posso comparar ao gigante de santidade, ciência e arte que ele foi. O que neste momento toca o mais fundo do meu interior, despertando nele tão grande variedade de sentimentos, é ainda uma composição musical inspirada na presença de Maria no mistério de Cristo.
A Ave Maria de Bach-Gounod não será tão conhecida nem tão chorosa como o Stabat Mater de Pergolesi, mas desperta em mim, neste momento, o mesmo sentimento de súplica de quem se sente perdido num mundo de coisas que não consegue coordenar de modo a torná-las dignas da morte de um apaixonado que é o próprio Deus. Deus que não só quis morrer por mim, mas que Se dignou depositar nas minhas mãos pecadoras o poder de renovar uma e muitas vezes o mistério dessa morte.
Sancta Maria, Mater Dei… ora pro nobis… pro nobis, peccatoribus!
Minha queridíssima Mãe! Sabeis como aconteceu que nos ordenássemos, os quatro daquele ano, faz hoje cinquenta e nove, em dia tão solene para Vós e para a Igreja, que vos ama e pela qual me tinha já apaixonado há muito tempo!
Não vos peço mais felicidade que a que tenho, nem mais alegria que a que sinto desde manhã: peço-vos apenas que as sombras que ameaçam os horizontes do meu dia não encubram a Cruz juto da qual vos vejo esmagada de dor, pelo Filho que nela agoniza e pelos filhos por quem Ele morre.
Não, minha Santíssima Mãe! Não quero mais felicidade nem mais alegria! Quero apenas ser mais fiel!
Mais fiel, mesmo nos momentos tristes que às vezes enchem de espinhos as rosas com que adornais o caminho do sacerdote; caminho tão recheado de coisas belas, que a pior tentação será tomá-las como razão da nossa perseverança, esquecendo o amor que nos trouxe ao sacerdócio.
É uma graça incomparável, que cinquenta e nove anos depois, a única mágoa que ensombra o nosso espírito, seja a de não termos vivido tão radicalmente o nosso sim, como Vós, querida Mãe, vivestes o Vosso.
Mas também esta mágoa tem de ser vivida sacerdotalmente, sob pena de já não sermos integralmente fiéis.
Claro. Também quando se arrepende, quando abre o coração à dor pelas suas infidelidades, o padre tem de ser sacerdote, de mãos erguidas para Deus, oferecendo-Lhe a dor que sente, não propriamente como o ladrão arrependido, mas como o crucificado que, por momentos, breves ou longos, terá descido da cruz, â qual quer voltar: padre pecador, padre arrependido, padre convertido: padre, sempre padre, imolando-se e imolando, com Cristo, pela humanidade inteira.
Com uma fé tão grande e pura como a da Cananeia, que não quer de Jesus senão que seja, para ela a para a filha, JESUS (Deus que ssalva).
Assim mesmo, alheia a tudo o que pareça ideológico, demasiado humano, escondendo a universalidade do amor daquele Deus, que, apesar das aparências, está ali, por detrás das duríssimas palavras pronunciadas contra a sua raça.
O racismo!
A mágoa que me provoca o ódio trazido ao uso desta palavra nos últimos tempos, quase me impede de irromper no hino de acção de graças que devia brotar dos meus lábios neste dia.
Peço por isso licença para transcrever o que escrevi há três anos, e que mão amiga me fez chegar há dias:
Modifico apenas duas ou três coisas, para manter a coerência.
Cinquenta e nove anos depois, penso que nada mais tenho a dizer senão MUITO OBRIGADO!
Muito obrigado, meu Deus, porque, apesar de todos os pesares, foi um tempo maravilhoso; com dores e lágrimas, como não podia deixar de ser, mas sobretudo com a alegria permanente da experiência das tuas misericórdias.
Muito obrigado, queridos irmãos e sobrinhos pelo carinho de que tendes rodeado a minha velhice.
Muito obrigado, todos os que, na casa Diocesana do Clero, de um modo ou de outro, me ajudais a cumprir o propósito de ser padre até ao fim.
Muito obrigado, queridos amigos, de perto e de longe, no tempo e no espaço, pela generosidade com que tendes sabido passar de largo os defeitos que não consegui corrigir.
Muito obrigado a todos quantos se lembraram de rezar por mim e pelos colegas que também celebraram o aniversário do seu sacerdócio nesta altura.
Que Deus lhes pague como só Ele sabe.
Fátima,16 de Agosto de 2020