Há justiça nos impostos?

Com a discussão sobre o Orçamento do Estado a que temos assistido nas últimas semanas, uma das questões que mais circula nos discursos, na comunicação social e nas conversas de café é a da carga fiscal. Afinal, é justo ou não pagar impostos? E os impostos pagos são justos ou exagerados? E é justa a sua distribuição por cada um dos cidadãos ou instituições? E que dizer da sua finalidade e forma de aplicação por parte do Estado?

Estas e outras questões não têm, como é óbvio, resposta fácil. Mas nem por isso devem deixar de ser discutidas, em ordem a procurar-se o equilíbrio possível para uma fiscalidade justa. Procurando contribuir para essa discussão, abordamos o assunto no contexto da recente conferência anual da Comissão Nacional Justiça e Paz sobre o tema, que motivou também um caderno especial do Semanário Ecclesia.

Fomos também pedir a opinião de duas personalidades locais com responsabilidades governativas locais e com ligação profissional aos sectores das finanças e da gestão empresarial.

Luís Miguel Ferraz

 

Conferência anual da CNPJ

Em busca dos critérios para uma “tributação justa”

A Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) organizou a sua conferência anual no passado dia 22 de outubro, em Lisboa, sobre o tema “Sistema Fiscal e Justiça Social”. Em debate estiveram quatro grandes temáticas: “O sistema fiscal na Doutrina Social da Igreja”; “Sistema fiscal e justiça social”; “A ética e os impostos” e “O que é uma tributação justa?”.

Na abertura, D. Manuel Clemente, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, começou por apontar a “grande contradição” das sociedades atuais, aos promoverem simultaneamente a globalização e a individualização. “A globalização põe-nos cada vez mais perto uns dos outros, quantitativa e mediaticamente falando; a individualização sociocultural pode reter, e retém, cada vez mais cada um em si mesmo, eliminando vizinhanças, desvitalizando comunidades, rarefazendo cooperações, virtualizando o mundo e abstendo-nos politicamente”, disse. E adiantou a importância e oportunidade do tema desta conferência como contributo para a discussão sobre um possível “sistema fiscal justo”.

Também na abertura, Pedro Vaz Patto, presidente da CNJP, sublinhou que a “via correta” não é a de quem defende que “não está moralmente obrigado a pagar impostos precisamente porque o sistema fiscal enferma de injustiças”, até porque “com a evasão fiscal a injustiça não desaparece”. Assim, o caminho será o de “configurar os sistemas fiscais com critérios de justiça, para que os cidadãos se sintam motivados a cumprir os seus deveres fiscais”. Procurando “contribuir para o bem comum e o exercício de solidariedade para com os mais pobres”, cada cidadão deverá cumprir os seus deveres fiscais “de bom grado” e não com o “temor de sanções”.

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Legalidade e legitimidade tributária

Num dos painéis da conferência, também a ex-presidente da CNJP Manuela Silva afirmou que é necessário “reabilitar” os impostos junto da opinião pública e esclarecer a sua finalidade, equidade e transparência. Um dos segredos será apontar os “objetivos que querem ser visados”, tais  como “o desenvolvimento integral, humano, a coesão social e o bem comum”. Só depois se poderá avaliar se os impostos que pagamos são ou não adequados a esses fins, o que “depende do que queremos construir como sociedade”.

Sem se pronunciar sobre se é exagerada ou não a atual carga fiscal, a economista preferiu apontar para a discussão sobre se a sua finalidade é “o bem comum”, se garante a “equidade com que são recolhidos” e se acontece com “transparência e previsibilidade”.

No mesmo painel, o também ex-presidente da CNJP António Bagão Félix defendeu que nos setores da habitação, educação e saúde a tributação deve ser aplicada com “estabilidade” e tendo por horizonte a constituição da “sociedade do futuro”, tendo em conta aspetos como “a natalidade e a construção da família com estabilidade e segurança”.

O ex-ministro das Finanças considerou ainda que “além da legalidade tributária é preciso que haja legitimidade tributária”, pois a “tributação não deve ser inibidora do crescimento e do desenvolvimento” e “há limites que não devem ser ultrapassados”, doseando o “equilíbrio entre impostos presentes e impostos futuros”.

O ato cristão de pagar impostos

O encerramento da conferência foi presidido pelo presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana, D. Jorge Ortiga, que lembrou o atual momento de aprovação do Orçamento de Estado, sobre o qual defendeu que tenha “verbas em número significativo e capaz de restituir a dignidade a quem está privado dela”. Frisando que “a justiça social exige que pessoas ou grupos com rendimentos menores sejam tidas em consideração”, e que a distribuição de recursos sociais seja igualitária, o prelado alertou para que “negligenciar os pobres, a quem muitas vezes a comunicação social remete para o silêncio, é uma injustiça social grave”.

Sobre a questão em debate, o arcebispo de Braga afirmou que pagar impostos é “um dever de justiça e um modo de contribuir para o bem comum” e que “particularmente para o cristão, o pagamento dos impostos deve ser encarado como uma forma de concretização da dimensão política e social da caridade cristã”. Nessa linha, denunciou as “fraudes e as evasões fiscais de muitas pessoas e instituições”, o recurso aos “paraísos fiscais” que “permitem, muitas vezes, que empresas com lucros astronómicos paguem menos do que empresas de pequenas dimensões”, e defendeu que “não pode haver medo de denunciar formas de evitar o pagamento, que até poderão ser legais, mas que não deixam de ser ilegítimas e imorais”.

No final, em declarações à comunicação social citadas pela Agência Ecclesia, D. Jorge Ortiga referiu-se ao pagamento de impostos por parte da Igreja Católica, garantindo que cumpre os seus deveres e que “não vê” razões para tributação fiscal quando em causa estão “fins sociais”.

LMF, com Ecclesia

 

A resposta de…

Enviámos a pergunta que é título deste artigo – e pedimos a resposta – a duas pessoas com responsabilidades governativas na região. São presidentes de duas câmaras municipais vizinhas, de diferentes cores políticas, e ambos com carreiras ligadas à área da economia.

2016-10-25 impostosRRaul Castro é presidente do Município de Leiria, eleito pelo PS. Frequentou o curso de Economia e é licenciado em Ciência Política e mestrando em Administração e Políticas Públicas. Desenvolveu a sua carreira na Direção Geral dos Impostos, tendo sido diretor da 2.ª Direção de Finanças de Lisboa. Tem uma longa experiência autárquica, tendo sido também presidente do Município da Batalha, bem como na área do associativismo.

 

 

A discussão em torno da justiça nos impostos tem sido recorrente no nosso país, em especial num tempo de dificuldades orçamentais, um debate que se intensifica todos os anos por esta altura, quando é conhecida a proposta de Orçamento de Estado.

Trata-se sempre de uma avaliação subjetiva, em que é preciso por um lado garantir igualdade de tratamento para os contribuintes que se encontram no mesmo patamar de rendimentos, mas também equilíbrio naquilo que se exige a contribuintes de diferentes condições.

Por outro lado, exige-se uma aplicação eficiente das receitas, para, por esta via, se garantir também justiça nos benefícios para toda a comunidade resultantes da utilização dos bens públicos.

Quanto às instituições que desempenham um papel social relevante e que em muitas áreas, em particular no apoio social, se substituem ao Estado, entendo que devem merecer uma atenção muito especial no campo da tributação, nomeadamente no que diz respeito ao património e recursos que utilizam para o exercício desta missão.

Nestes casos, creio que a redução ou mesmo isenção de tributação é uma medida defensável, tendo em conta que tal medida pode libertar meios para a missão social que estas instituições desenvolvem.

 

2016-10-25 impostosPPaulo Batista Santos é presidente do Município da Batalha, eleito pelo PSD. Licenciado em Contabilidade e Administração, fez carreira profissional como gestor e diretor financeiro de empresas. Tem um vasto currículo político, como dirigente partidário e autarca, além de ter sido por diversas vezes deputado na Assembleia da República.

 

 

 

Em resultado dos aumentos dos impostos como resposta à crise e à fragilidade das contas públicas, os portugueses nos últimos quinze anos passaram de 128 dias de trabalho destinados ao Estado para 158. Ou seja, mais 30 dias. Parece muito e sobretudo dá a ideia da evolução da carga fiscal no nosso país. Claro que é uma simplificação. Mas não deixa de ser significativo que se tenha de trabalhar mais de cinco meses para cumprir com todas as obrigações em termos de impostos, desde o IRS ao IVA, passando pelo IMI ou pelo ISP.

Com efeito, tão importante quanto o que se paga ao Estado em impostos é aquilo que se recebe em serviços do Estado. Por outras palavras, a necessária aceitação social dos impostos, conceito ligado à noção de que os impostos pagos atenuam as desigualdades e asseguram o desenvolvimento das nações. Assim, pode-se trabalhar mais dias para pagar impostos e, porém, considerar-se que é um esforço que vale a pena. Cabe a quem governa encontrar o equilíbrio.

A esse propósito e em tempo de mais um Orçamento do Estado, onde o tema dos impostos e da despesa pública voltam a estar na ordem do dia, recordo as palavras de Sua Santidade o Papa Francisco, na sua Segunda Carta Encíclica «Laudato Si’», a pretexto do diálogo para novas políticas nacionais: “…O drama de uma política focalizada nos resultados imediatos, apoiada também por populações consumistas, torna necessário produzir crescimento a curto prazo. Respondendo a interesses eleitorais, os governos não se aventuram facilmente a irritar a população com medidas que possa afetar o nível de consumo…”. Ora, enquanto o paradigma do imediatismo vigorar, a dita justiça fiscal será condicionada mais pelos ciclos eleitorais do que orientada pela função social dos impostos.

 

2016-10-25 impostos3Três aspetos a considerar

1. O peso crescente dos impostos indiretos provoca um recuo nos efeitos redistributivos e solidários do sistema fiscal, pois a tributação indireta é tendencialmente cega às necessidades e rendimentos reais das famílias.

2. O surgimento de uma parafiscalidade cada vez mais pesada (taxas municipais, taxas das entidades reguladoras de energia elétrica, água, saneamento, contribuições extraordinárias, segurança social) parece não conhecer limites; tanto mais que apenas a criação de impostos é reservada ao Parlamento, de modo que este tipo de encargos surge como fruto da autonomia de um crescente conjunto de centros de decisão.

3. A volatilidade dos capitais e a competitividade dos mercados fiscais distorcem os mecanismos de tributação a uma escala puramente nacional. O constante receio da fuga de capitais para ‘paraísos fiscais’ ou para territórios com níveis de tributação mais reduzidos contribui para que a tributação do capital não seja verdadeiramente justa por comparação com os impostos sobre os rendimentos do trabalho.

José Manuel Pereira de Almeida,
diretor do Secretariado Nacional da Pastoral Social, in Semanário Ecclesia.

 

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O que ensina a doutrina social da Igreja
relativamente aos impostos e à solidariedade social?

A profundidade e rapidez das transformações reclamam com maior urgência que ninguém se contente, por não atender à evolução das coisas ou por inércia, com uma ética puramente individualística. O dever de justiça e caridade cumpre-se cada vez mais com a contribuição de cada um em favor do bem comum, segundo as próprias possibilidades e as necessidades dos outros, promovendo instituições públicas ou privadas e ajudando as que servem para melhorar as condições de vida dos homens. Mas há pessoas que, fazendo profissão de ideias amplas e generosas, vivem sempre, no entanto, de tal modo como se nenhum caso fizessem das necessidades sociais. E até, em vários países, muitos desprezam as leis e prescrições sociais. Não poucos atrevem-se a eximir-se, com várias fraudes e enganos, aos impostos e outras obrigações sociais. Outros desprezam certas normas da vida social, como por exemplo as estabelecidas para defender a saúde ou para regularizar o trânsito de veículos, sem repararem que esse seu descuido põe em perigo a vida própria e alheia. (Concílio Vaticano II, Constituição pastoral Gaudium et Spes, 30).

A colecta fiscal e a despesa pública assumem uma importância económica crucial para qualquer comunidade civil e política: o objectivo para o qual deverão tender é umas finanças públicas capazes de se proporem como instrumento de desenvolvimento e de solidariedade. Umas finanças públicas equitativas, eficientes, eficazes, produz efeitos virtuosos na economia, porque consegue favorecer o crescimento do emprego, apoiar as atividades empresariais e as iniciativas sem fins lucrativos, e contribuem a aumentar a credibilidade do Estado enquanto garante dos sistemas de previdência e de proteção social destinados, em particular, a proteger os mais fracos.

As finanças públicas orientam-se para o bem comum quando se atêm a alguns princípios fundamentais: o pagamento dos impostos como especificação do dever de solidariedade; racionalidade e equidade na imposição dos tributos; rigor e integridade na administração e no destino dado aos recursos públicos. Ao redistribuir as riquezas, as finanças públicas devem seguir os princípios da solidariedade, da igualdade, da valorização dos talentos, e prestar grande atenção ao amparo das famílias, destinando a tal fim uma adequada quantidade de recursos. (Compêndio de Doutrina Social da Igreja, 355)

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