Na linguagem popular da minha aldeia, aquela em que primeiro ouvi falar dos grandes mistérios da fé, não era preciso acrescentar mais nada: todos sabiam que o Preciosíssimo Sangue, era o sangue derramado por Jesus, como sabiam que o Santíssimo era o santíssimo sacramento da Eucaristia; e os homens levantavam respeitosamente o chapéu, sempre que a ele se referiam.
Não. Não era tabu, nem superstição, nem tão pouco respeito exagerado: era sentimento sincero de fé, expresso sem complexos.
Celebrava-se, pois, a Festa do Preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, segundo a designação litúrgica; e gravou-se-me de tal modo na memória aquele dia quente de Julho, talvez por ser o início das férias de Verão, que o caminho que tinha de percorrer de casa para a igreja paroquial, a pé, através das aldeias, entremeadas de campos de milho verdejante e encostas de cepas onde pintavam já sedutores bagos, este caminho sempre me sugere tal festividade.
Hoje, passado o último domingo de Junho, apetece-me paticar uma certa vingança contra as circunstâncias que me limitam os passos: saltar no tempo… para trás, dirão alguns. Eu, porém, porque não acredito na possibilidade de tais saltos, quero, antes, que o espírito se compense das limitações físicas, cortando as barreiras do tempo e do espaço.
Regressar ao passado, não para me fixar nele, mas para agradecer a Deus as gratas memórias que dele me ficaram e que, mesmo depois das alterações feitas por quem de direito no calendário litúrgico, sempre o primeiro de Julho reaviva aquela imagem, mais expressiva do que teológica, do meu missal quotidiano – chamava-se Missal Quotidiano e Vesperal, da responsabilidade dos beneditinos de Santo André, Bruges (Bélgica) – Jesus morto, com um anjo recolhendo o sangue botando da ferida que, no peito do Senhor morto, abria o soldado da execução.
A cena do Evangelho vem descrita com grande realismo e força testemunhal no texto joanino:
“Como era o dia da Preparação da Páscoa, (…) os judeus pediram a Pilatos que se lhes quebrassem as pernas e fossem retirados. Os soldados foram e quebraram as pernas ao primeiro e também ao outro que tinha sido crucificado juntamente. Mas, ao chegarem a Jesus, vendo que já estava morto, não lhe quebraram as pernas. Porém, um dos soldados trespassou-lhe o peito com uma lança e logo brotou sangue e água.
Aquele que viu estas coisas é que dá testemunho delas e o seu testemunho é verdadeiro. E ele bem sabe que diz a verdade, para vós crerdes também.
É que isto aconteceu para se cumprir a Escritura, que diz: Não se lhe quebrará nenhum osso. E também outro passo da Escritura diz: Hão-de olhar para aquele que trespassaram” (Jo 20, 31-37).
Para me ajudar na meditação deste trecho joanino, procuro, mais uma vez, a ajuda de Santo Agostinho, do qual ofereço, pedindo perdão de todos os seus limites, a minha tradução.
Começa assim o santo bispo de Hipona:
“Um soldado abriu-lhe o lado com uma lança, e logo saiu sangue e água.
Abriu-lhe o lado, para que aí de certo modo se abrisse a porta da vida, donde jorraram os sacramentos da Igreja, sem os quais não se entra para a vida que é a verdadeira vida. Ó morte pela qual os mortos revivem! Que existirá de mais puro que este sangue? Que haverá de mais salutar que esta ferida?”
Alonga-se Agostinho no simbolismo e significado bíblico dos pormenores narrados pelo evangelista, desde a afirmação da morte (entrega do espírito), insistindo de modo especial no nascimento da Igreja, tirada do lado aberto de Cristo, o novo Adão, mergulhado no sono da morte, como a mulher do lado do primeiro Adão, também mergulhado num sono enviado pelo Criador de ambos; e termina:
“Aquele que viu estas coisas é que dá testemunho delas e o seu testemunho é verdadeiro, para que vós a crediteis.
Não disse para que saibais, mas para que acrediteis. Pois aquele que viu, não viu para que se acredite no seu testemunho. De facto, acreditar diz muito mais em relação à fé do que ver. Pois, que coisa é crer senão ver com fé? Por isso diz: tudo isto aconteceu para que se cumprisse a Escritura” (Cfr in Ev Joan 120).
Ajuda ter presente que a Escritura não é um documento histórico de factos acontecidos, mas da fé com que os crentes vêem o que está para além dos factos.
E os factos, vistos apenas como factos, mesmo quando provados por fontes externas, não deixam ver tudo o que significam; não são Escritura, no sentido bíblico do termo.
E, em qualquer dos casos, tem de se guardar a coerência da fé, que é um dom de Deus. Um dom, absolutamente gratuito, que temos de pedir com a consciência de que nunca é suficiente; e quando não cresce, estiola-se e morre.