Antes de iniciar a redacção do texto que vou oferecer aos meus leitores do facebook, detive-me demoradamente com a dúvida sobre se devia ou não escrever pensamentos que vinham marcados por uma reacção de certo modo negativa, perante o que me parece um abuso insensato da palavra.
Chocam-me particularmente os discursos repetitivos em que abundam temas como “corrupção”, “tráfico”, “transparência” e, de modo especial, “pedir desculpa” (são cada vez mais as pessoas que dizem “pedir desculpas”, alterando o significado original da expressão), “perdoar” ou “pedir perdão”.
Às vezes penso que se fala tanto sobre isto, porque, de facto, é cada vez mais evidente que se alarga o número dos que cedem à tentatção de se armarem em juízes implacáveis dos outros, para não terem de ver os seus próprios erros.
Foi por isso que da minha reflexão matinal sobre os textos da missa desta terça-feira (terceira semana da Quaresma), fui reparando, a pouco e pouco, no grande pecado dos nossos dias: fala-se demasiado de perdão e perdoa-se cada vez menos.
E não sei se mesmo os responsáveis pela condução da comunidade crente, no seu papel de tornar presente o mistério de Cristo na história dos homens, têm resistido suficientemente a essa tentação: porque, em meu entender, e perdoem-me todos os que porventura sentirem que estou a fazer o que me parece mau, em meu entender, não há melhor maneira de mascarar as próprias culpas, do que pedindo desculpa em nome de outros, ou de instituições que, como tais, não podem ser culpabilizadas de nada.
Por isso, quando retomo a primeira leitura, esforçando-me por identificar-me com os jovens lançados na fornalha, por terem querido ser fiéis aos preceitos divinos, sinto que devo tomar a fornalha como símbolo do mundo em que vivo: não um mundo abstracto, puramente conceptual, mas concreto, com todos os incêndios que lançam por aí, já não falo dos tiranos caprichosos, mas os que defendem vias erradas para chegarem a valores que não soubemos mostrar-lhes em devido tempo.
Da belíssima oração que faz Azarias, assumindo como próprias, que o eram de facto, as culpas do seu povo, recolho este passo, que, alterando apenas um ou dois nomes, poderia ser a nossa oração de crentes em Jesus Cristo:
“De coração arrependido e espírito humilhado sejamos por Vós recebidos como se viéssemos com um holocausto de touros e carneiros e milhares de gordos cordeiros.
Seja hoje este nosso sacrifício agradável na vossa presença, porque jamais serão confundidos aqueles que em Vós esperam”.
Rezar assim, perante o que nos dói, física e sobretudo moralmente, na hora que passa, será o único meio de evitarmos a amargura do filho mais velho da parábola, dominado por um sentimento absurdo de injustiça, por não ter nunca percebido a felicidade que era viver na casa do pai.
Sentimento de que não está isenta a pergunta de Pedro, no evangelho de hoje: “Senhor, se o meu irmão me ofender, quantas vezes lhe deverei perdoar? Até sete vezes?”
A resposta de Jesus, dada em dois tempos, é tão clara, que não nos resta hipótese sequer de fazer nossa a dúvida do apóstolo:
“Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete”.
Ainda há quem discuta o valor real dos factores da multiplicação (setenta vezes sete, ou setenta e sete vezes?); mas, além de que, em qualquer dos casos, lidamos com números simbólicos, a alegoria usada por Jesus – a desproporção entre o montante das duas dívidas (a que para com o patrão tem o trabalhador e a que para com este tem o companheiro ) –, sem discutir as vezes que devemos perdoar, mostra claramente o absurdo de recusarmos o perdão de ofensas que nem sequer têm comparação possível com as que fazemos a Deus. Deus, cujo perdão não cabe na pessoa que se fecha a ele, não perdoando aos outros.
Seria bom percebermos melhor o modo como o Evangelho e a liturgia, concretamente através da quinta petição do Pai nosso, se referem a este mistério: o que pedimos a Deus é que nos torne capazes de perdoar, para podermos ser perdoados.
Talvez as traduções – aliás, sempre difíceis, dadas as conotações que perturbam o significado das palavras correntes – talvez as traduções precisem de catequeses mais adequadas, para nos não deixarmos influenciar, ainda que insensivelmente, neste caso, pela mentalidade do negócio: pagar para…
O perdão, como tudo quanto se relaciona com Deus, é um mistério de conversão; por isso exige mais oração e emenda de vida do que discursos inflamados sobre comportamentos raramente atribuídos a pessoas concretas, para não termos de ver até que ponto os erros dos outros, conscientes ou não, são também nossos.
E precisamos de nos defender de uma certa hipocrisia que pode esconder-se por detrás da prática, quanto a mim excessivamente generalizada, de pedir perdão, ou exigir que se peça, para entidades que não deixam de ser anónimas, quando o seu nome encobre as pessoas concretas, permitindo assim que se enlameiem culpados e inocentes.