Como musicólogo, maestro e professor, Paulo Lameiro já trabalhou transversalmente para públicos de diferentes contextos e faixas etárias. Natural dos Pousos, onde iniciou os estudos musicais na filarmónica, é autor de vários projetos de formação e produção musical, que viram, nos inúmeros palcos já percorridos pelo país o mundo, um reconhecimento alargado.
Ao Presente Leiria-Fátima, Paulo Lameiro fala desta vasta atividade criativa como uma procura de “algo que já existe verdadeiramente, só não está revelado”.
Músico, musicólogo, criativo, maestro… Que papel tem a sua vivência pessoal de fé em toda esta actividade?
Antes de mais, e independentemente da minha actividade profissional, eu sou, como todos nós, resultado da educação que tive, da família e do meio onde cresci. E eu cresci numa família cristã envolvida na comunidade, e desde bebé vivi as celebrações litúrgicas junto ao órgão e a ouvir cantar o coro e meus pais. É certo que de minha mãe recebi uma matriz de fé mais próxima dos rituais, dos costumes, das celebrações, e de meu pai uma fé mais universal, menos refém dos canons, mas da grandeza e amor infinitos de Deus. Deste ninho acabei por fazer a síntese que a minha experiência de vida e de formação me ofereceram. Viajar e conhecer outras experiências de fé também me alargou muito o território da relação com Deus, processo sempre em crescimento e sobre o qual reflicto cada vez mais.
Enquanto criativo, a diferença entre ter fé e não ter é colossal e afecta todo o processo, pois para o artista crente a obra tem sempre um Criador prévio. Ou seja, sinto-me sempre a procurar algo que já existe verdadeiramente, só não está revelado. O artista crente procura, mais do que origina. Se tivermos em conta que o processo criativo é extraordinariamente complexo (porque também os não crentes partem sempre de material pré-existente para criar) envolvendo ideias, vontades, sonhos, materiais, técnicas, experiência, formação, recursos, outras pessoas, etc… Ter fé afecta do mais pequeno passo à decisão mais significativa.
Enquanto músico, naturalmente que sempre me fascinaram especialmente as obras, épocas ou compositores que procuram aproximar o homem de Deus. Ou seja, pouco me importa se é um protestante como J.S Bach que escreveu dentro dos canons da chamada música clássica o que de mais belo alguma vez foi escrito para louvar a Deus, seja um canto multifónico budista, um verso do Corão por um bom cantor Iemenita, um salmo Judaico, ou um canto das almas interpretado por um dos muitos grupos que ainda o fazem no nosso país. Confesso pois que as obras com este desejo em si mesmas, o “religare” o homem a Deus, me fascinam um pouco mais que todas as outras.
Como musicólogo, e especialmente pela minha formação em etnomusicologia (a antropologia da música) sempre tive uma enorme curiosidade em perceber, analisar, o que caracteriza estas obras religiosas, o que as distingue, o que as identifica. O que existe de comum entre a música religiosa dos diferentes povos do planeta, daqueles a quem chamamos primitivos aos outros mais avançados em que ingenuamente nos incluímos. Porque o homem é crente desde a sua origem. É, do meu ponto de vista, uma das particularidades do próprio ser humano, e a Arte em geral, a música em particular, tem ocupado ao longo de toda a história da humanidade um papel único como interface privilegiado com Deus. Interessa-me muito por isto estudar estruturas rítmicas, harmónicas, tímbricas, formais, que o ser humano em diferentes momentos da sua história e diferentes espaços geográficos usam em comum para Louvar a Deus.
Devo ainda dizer que como maestro ou professor, o facto de ser crente me reforça uma tendência para o profundamente íntimo, e ao mesmo tempo a infinita e surpreendente capacidade humana. Somos ao mesmo tempo templos de Deus, com tudo o que implica este assumir a responsabilidade, mas também o privilégio supremo de termos sido escolhidos como morada do Criador, e actores na Sua história.
Para si, qual o contributo da arte na abertura do Homem à fé?
Não tenho a menor dúvida que a Arte é a maior das portas do Homem para a Fé. Especialmente hoje, onde o exercício espiritual é uma experiência rara e difícil, mas também ao longo de toda a história, como o documentam abundantemente tanto a história das Artes como das Religiões. A civilização ocidental em que vivemos não deixa espaço para a vida interior. Não há silêncios nos nossos dias. Os stress’s laborais e familiares não deixam tempo para contemplar o mundo, ou para nos contemplarmos a nós próprios, a obra de Deus. A Ciência já fala em saúde espiritual, mas muito poucos têm consciência dela, e muitos menos ainda a sabem cuidar. Não tenho dúvidas por isso que a beleza da obra de Deus é hoje seguramente a melhor das portas para a Ele aceder.
Qual a sua opinião sobre o recente esclarecimento diocesano relativamente aos concertos musicais nas igrejas?
O tema é muito rico e complexo, e durante os anos que integrei a Comissão de Liturgia e Música Sacra da nossa Diocese sempre me senti muito desconfortável com o dossier, não tanto pela ausência de procedimentos generalizados, mas pela desinformação das paróquias e seus agentes, e pelos naturais conflitos que daí decorrem.
Julgo ainda assim que a igreja diocesana não deveria esperar por polémicas ou temas mediáticos para responder a uma necessidade real da nossa comunidade. Comissões de Festas, Conselhos Pastorais, noivos, catequistas e muito especialmente os párocos, confrontam-se regularmente com situações de grande ambiguidade no que diz respeito ao que se pode ou não fazer ou expor nos espaços de celebração do ponto de vista artístico. Os concertos e a música são porventura os elementos mais comuns neste dossier, mas não os podemos separar de todos os restantes elementos artísticos e estéticos que habitam os nossos Templos.
Não sendo fácil definir o que é música de inspiração religiosa, e acredite que eu dediquei parte da minha vida a este desafio, importa ter regras claras que se cumpram por todos os agentes envolvidos. Neste sentido a nota do nosso Vigário é muito importante. Mas as normas não resolvem o problema de fundo, porque as pessoas e as comunidades que deixam de fazer algum evento porque lhes é simplesmente proibido, revoltam-se e não crescem. É necessário implementar dois processos: um programa de formação, e um modus operandi esclarecido e judicioso no processo de apreciação de cada pedido. A formação de todos os agentes directamente envolvidos nas decisões do que pode ou não pode ser feito ou mostrado dentro de um tempo é capital, e pode ser feita de forma sistémica ou pontual. Já a definição dos critérios para apreciação dos pedidos é mais complexa, e por isso não existe uma “tabela universal” ou das Conferências Episcopais a dizer o que pode e não pode ser ouvido nas igrejas. Creio pois que se devia aproveitar a oportunidade do tema estar em cima da mesa para se fazer do mesmo uma reflexão partilhada nos diversos órgãos diocesanos. Importa que as comunidades se sensibilizem antes de mais para o cuidado de Louvar o Senhor com fé, amor, dignidade e qualidade (Diria o nosso querido Carlos Silva, com Arte e com Alma). Essa sensibilização é muito mais importante do que tentar definir quais os artistas, instrumentos ou géneros musicais que são de inspiração religiosa e por isso podem entrar nas nossas igrejas. Entre a riquíssima história de disparates que a Igreja fez, lembro só que ainda não passaram 100 anos do tempo em que se excomungaram músicos por terem tocado trombones dentro da igreja, instrumento considerado por decretos episcopais “fragoroso”, como o trompete e outros sopros, e por isso completamente proibido. Apesar dos altares e os tectos dessas igrejas estarem repletos de anjos nos céus a tocarem esses mesmos instrumentos!