Madrugada de 6 de Fevereiro de 1927, à porta do cemitério de Durango, no México:
Mateus Correia Magalhães, mal completados os sessenta anos de idade, morre sob as balas de um general que o prendera, ao serviço do Estado central.
Qual o crime que provoca tal execução sumária? Pura e simplesmente, a fidelidade ao seu dever profissional. E que profissão exigia tal entrega da sua vida?
Mateus era sacerdote, e queriam obrigá-lo, não apenas a dizer os nomes dos penitentes que atendera de confissão, mas a revelar algum segredo que interessasse ao governo revolucionário, já com as mãos cobertas do sangue de centenas de católicos, que se recusavam a aceitar o marxismo da sua política.
Mateus não foi o primeiro, não foi o último, nem será, ele e tantos outros do mesmo século, os últimos sacerdotes que pagaram, pagam a pagarão com a própria vida a sua fidelidade ao dever profissional.
Talvez se pense pouco em que o segredo exigido ao padre que escuta a confissão dos pecados, no exercício do seu ministério, é um dos pontos mais graves da sua profissão: tão grave, que a quebra directa e consciente desse dever é punida pela lei canónica com a excomunhão automática.
Não se trata apenas da virtude, hoje tão esquecida, para não dizer abandonada e pisada, da discrição, cujo desprezo, por muito que se mascarem as coisas, continua a fazer estragos incontáveis em todos os sectores da vida humana: basta pensar no veneno que se tornou quase epidémico na voragem de um certo jornalismo, como são as chamadas fugas de informação.
Com a agravante de muito do que se desculpa como fuga de informação não passar frequentemente de puro boato, destinado a liquidar pessoas e instituições que causam algum incómodo, público ou privado.
Mas eu queria reflectir por momentos sobre o carácter emblemático da morte, às portas do de cemitério de Durango, de São Mateus Correia de Magalhães.
Emblemática, não, como se disse, pela sua singularidade; mas pelo que encerra de testemunho vivo da presença de Cristo na história dos homens, que tanto O adoram como crucificam; e quem quer seguir os seus passos não pode, em caso nenhum, admitir que morrer pelos que serve, não lhe diz respeito.
Disso nos preveniu o próprio Jesus, em inúmeras ocasiões e com tons que nos não permitem continuar, como muitas vezes fazemos, a passar por alto, avisos que, afinal, se referem ao essencial do seguimento de Cristo.
Para mim, têm particular importância, pela solenidade do momento em que são ditas, e também porque, tão conhecidas são, que raramente se vai ao fundo do seu significado, têm particular importância as seguintes afirmações de Jesus:
Segundo o quarto evangelho, Jesus, que amou os Seus até ao último extremo, antes da ceia, lava os pés aos que com Ele estavam e inicia a longa conversa de despedida, que ocupa nada menos que quatro capítulos, à beira da quinta parte de todo o evangelho de João.
Começa assim:
“Compreendeis o que vos fiz? Vós chamais-me ‘o Mestre’ e ‘o Senhor’, e dizeis bem, porque o sou. Ora, se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Na verdade, dei-vos exemplo para que, assim como Eu fiz, vós façais também” (13, 13-14).
E, a terminar a primeira parte desta longa conversa:
“Já não falarei muito convosco, pois está a chegar o dominador deste mundo; ele nada pode contra mim, mas o mundo tem de saber que Eu amo o Pai e actuo como o Pai me mandou. Levantai-vos, vamo-nos daqui!” (14, 30-31)
Penso não cometer nenhum erro, nem exegético nem teológico, vendo uma ligação muito profunda nas palavras da instituição da Eucaristia, transmitidas por São Paulo e São Mateus:
“Porque este é o meu sangue, sangue da Aliança, que vai ser derramado por muitos, para perdão dos pecados” (Mt 25, 28).
São Paulo narra a tradição já recolhida por ele:
“Com efeito, eu recebi do Senhor o que também vos transmiti: o Senhor Jesus na noite em que era entregue, tomou pão e, tendo dado graças, partiu-o e disse: «Isto é o meu corpo, que é para vós; fazei isto em memória de mim». Do mesmo modo, depois da ceia, tomou o cálice e disse: «Este cálice é a nova Aliança no meu sangue; fazei isto sempre que o beberdes, em memória de mim.» Porque, todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciais a morte do Senhor, até que Ele venha” (1 Cor 11, 23-26).
Ou seja: celebrar a Eucaristia, como consagrado pelo sacramento da Ordem ou ainda que só pelo sacramento do Baptismo, não é mais do que cumprir o mandato supremo de Jesus, que, no mesmo contexto, diz que temos de fazer o que Ele fez e com a entrega total à vontade do Pai, como Ele o fez.
Morrer fuzilado às portas de um cemitério, ou pregado na cruz da incompreensão e do ódio daqueles que seve, não será mais do que celebrar, em cada momento, segundo as circunstâncias de cada um, a Eucaristia que actualizou sobre o altar, cumprindo o mandato solene de Cristo: FAZEI ISTO EM MEMÓRIA DE MIM.