O número crescente de cristãos divorciados a viver em nova união levou a Igreja a entrar num já longo processo de discernimento pastoral. Em 1981, São João Paulo II desafiou a Igreja, particularmente os pastores, a discernir bem as várias situações e a «ajudar os divorciados, promovendo com caridade solícita que eles não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto batizados, participar na sua vida» (FC 84). Os dois sínodos sobre a família em 2014 e 2015, promovidos pelo Papa Francisco, e a exortação pastoral “A Alegria do Amor” que ele nos ofereceu na solenidade de São José (dia do Pai) de 2016 vieram dar continuidade a esta reflexão: «Iluminada pelo olhar de Cristo, a Igreja dirige-se com amor àqueles que participam na sua vida de modo incompleto, reconhecendo que a graça de Deus também atua nas suas vidas. (…) Embora não cesse jamais de propor a perfeição e convidar a uma resposta mais plena a Deus, a Igreja deve acompanhar, com atenção e solicitude, os seus filhos mais frágeis, marcados pelo amor ferido e extraviado, dando-lhes de novo confiança e esperança» (AL 291).
É neste contexto que surge a Nota Pastoral do senhor D. António Marto “O Senhor está perto de quem tem o coração ferido”. Como afirma na introdução, é com «afeto e misericórdia de pastor» que ele propõe aos fiéis divorciados a viver em nova união um caminho de acompanhamento e discernimento. O Guia Prático descreve em detalhe o percurso e as suas etapas. Depois de alcançada a liberdade interior – primeira etapa -, olha-se para o passado do casal com exigência e rigor – segunda etapa – e para a sua relação atual – terceira etapa -. Esta procura da vontade de Deus leva a uma tomada de decisão – quarta etapa – sobre a forma de integração na Igreja a que Deus os chama. Na quinta e última etapa a decisão é confirmada pelo casal e pelo orientador espiritual e é dada a conhecer ao bispo diocesano.
E assim chegamos à bonita história que a Rosália e o Gastão nos contaram. Além deles, há mais casais que agarraram esta proposta de braços abertos. No entanto, cada um segue ao ritmo que lhe é mais indicado. Se há uns já com muito caminho feito, outros estão ainda a dar os primeiros passos. O sacerdote ou orientador espiritual tem um papel bem definido neste percurso. Ele não é juiz nem substituto de consciências, nem a sua missão passa por trazer no bolso receitas pré-feitas e respostas imediatas. Ele é chamado a ser pastor em nome de Cristo e da Igreja e, como tal, acompanha, incentiva, reconforta, questiona e indica caminhos.
Entrar em casa e na intimidade familiar, partilhar uma refeição iniciada com uma oração do filho adolescente, reunir à volta da fogueira depois de os mais pequenos terem ido dormir, conter a respiração para ouvir histórias de sofrimento e superação, sentir a dor de quem ao rasgar um cartão também rasgou o coração, rezar a três a Sagrada Escritura e exultar interiormente ao sentir como Deus acalenta o coração daqueles que n’Ele confiam, etc, tem sido uma experiência muito enriquecedora.
Quando há uns meses ouvi uma palestra sobre o tema, retive uma expressão várias vezes repetida pelo orador: “Não sabemos!” De facto, o discernimento é o oposto do determinismo, da fatalidade e do pre-conceito. Não sabemos porque é a vontade de Deus que se busca e se deseja encontrar. Não sabemos porque o discernimento se faz com o presente, com as circunstâncias concretas de quem está a caminhar e aí escuta Jesus Cristo que diz: «Hoje veio a salvação a esta casa» (Lc 19, 9). Não sabemos porque «o vento sopra onde quer e tu ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito» (Jo 3, 8).
Discernir é uma ação interior que implica capacidade de desinstalação e desejo sincero de caminhar rumo a um fim em grande parte desconhecido. Portanto, é necessário deixar que a porta da vida se abra para que entre o ar rejuvenescedor que transforma a vida. «Não vos acomodeis a este mundo. Pelo contrário, deixai-vos transformar, adquirindo uma nova mentalidade, para poderdes discernir qual é a vontade de Deus: o que é bom, o que lhe é agradável, o que é perfeito» (Rom 12, 2).
Um dos maiores equívocos a combater é a ideia de que este percurso de discernimento tem como objetivo exclusivo saber se a Igreja vai permitir àquele casal voltar a confessar-se e comungar ou não. Aliás, quanto a este assunto, faz-nos bem lembrar que não há vez nenhuma que nos aproximemos da comunhão sem antes dizermos: “Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada…” Não se trata de permitir ou não, mas antes ajudar o casal a olhar para a sua vida à luz de Deus e dos ensinamentos da Igreja, deixando sempre que o Espírito Santo os guie à resolução mais correta. «Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las» (AL 37). Nesse sentido, tendo o Papa Francisco deixado em aberto a estes casais a possibilidade de acesso aos sacramentos, (cfr AL 305, nota 351), na quarta e penúltima parte do percurso, eles são convidado a colocar esta questão e a deixar-se guiar até uma de três respostas: “sim”, “não” ou “ainda não”. Todas são possíveis porque todas são expressão da vontade de Deus.
«O objetivo deste caminho é conseguir uma maior integração na vida da Igreja através de uma adequada participação na vida eclesial» (D. António Marto, “O Senhor está perto …”, 3). Por isso, está lançado o desafio aos casais que estão nestas circunstâncias: «Pedi, e ser-vos-á dado; procurai, e encontrareis; batei, e hão-de abrir-vos» (Mt 7, 7).
Caros casais, perguntai a Deus o que é que Ele quer de vós, porque não ficareis sem resposta.