A meio da tarde de um dia a vários títulos atribulado, cá por casa, enquanto o sol conserva o seu brilho envergonhado, recordo, com a liturgia romana, a figura heroica de Santo Atanásio, que nunca desistiu, apesar dos riscos em que se metia, de lutar pela integridade da fé no mistério de Cristo, perfeito Deus e perfeito homem.
E a companhia deste Doutor da Igreja do século IV, faz-me sentir mais seguro nas reflexões desta tarde, apesar do seu carácter exclusivamente pessoal.
Começo, assim, por transcrever, com o devido respeito, dois ou três parágrafos do texto incluído na liturgia das Horas:
“O Verbo de Deus, que é superior a todas as coisas, entregando e oferecendo em sacrifício o seu corpo, templo e instrumento [da divindade], pagou com a sua morte a dívida que todos tínhamos contraído.
Assim, o Filho incorruptível de Deus, tornando-Se solidário com todos os homens por um corpo semelhante ao seu, a todos fez participantes da sua imortalidade, a título de justiça, com a promessa da ressurreição.
A corrupção da morte já não tem poder algum sobre os homens, por causa do Verbo que por meio do seu corpo habita neles”.
Na linguagem do seu tempo, quer o santo Doutor dizer que Deus, para salvar a humanidade de modo humano, com absoluto respeito pela sua criatura, precisou da colaboração do próprio homem: na Encarnação, como a certa altura diz São Paulo, Ele fez-se igual a nós, em tudo, excepto no pecado. E diz ainda, noutra das sua cartas:
“Aquele que não havia conhecido o pecado, Deus o fez pecado por nós, para que nos tornássemos, nele, justiça de Deus” (2 Cor 5, 21).
É toda a maravilha do mistério das nossas relações com Deus!
Mas o que mais me encanta nesse mistério é o modo como Deus quis que a sua obra redentora fosse também nossa, para que a redenção, que tinha de ser divina, fosse também perfeitamente humana.
Quantos pensamentos magníficos, rejeitados pela opinião comum, só porque não se tem em conta toda a vastidão deste mistério!
Retomo o relato joanino da multiplicação dos pães (Jo 6, 1-13).
Fixo-me num pormenor em que toda a gente repara, mas do qual nem sempre se tiram as devidas conclusões: era uma multidão de pessoas entusiasmadas com a pregação ou curiosas dos milagres de Jesus; o dia declinava, e, com todo aquele entusiasmo e curiosidade, havia-se descurado o aprovisionamento necessário para a viagem. Não havia pão, não havia tempo nem dinheiro suficiente para comprar o que seria preciso para tanta gente.
Jesus, atento, como sempre, aos problemas das pessoas, se não fosse o Verbo encarnado, com uma missão humano-divina para cumprir, podia até ter feito com que ninguém se desse conta da existência do problema.
Em vez disso, pede a ajuda dos companheiros: que dêem o que têm, para que Ele lhes dê o que lhes falta.
Assim, com cinco pães e alguns peixes, farnel de um jovem menos distraído, mas muito generoso, matou-se a fome a uma multidão – o texto fala de alguns milhares -, e recolheram-se doze cestos com o pão que sobrou.
Um farnelito e uma multidão esfomeada; pelo meio, um coração generoso e a Bondade de Deus! Diz o texto sagrado que todos ficaram saciados.
É preciso tão pouco, para que a humanidade que nos rodeia se sinta mais feliz!
Continuamente assaltados por um complexo nascido da falta de Fé e Esperança, tomamos a atitude contrária à do jovenzito, quando lhe pediram que cedesse o seu farnel para matar a fome à multidão.
Mas o que é isto para tanta necessidade?
E não nos damos conta de que o que Deus nos pede não são as fortunas dos ricos, que, de um modo geral, quanto mais ricos, menos generosos são: no mundo moderno, até conseguiram inventar formas de prologar, após a morte, uma recompensa que, na medida em que exalta o seu nome, humilha ainda mais quem não tem.
O que Deus me pede são as migalhas, não do que me sobra, mas do pão de que me alimento, para que a fome dos outros seja também minha, e o pão que dou verdadeiramente nosso, não meu.
Este dar do nosso pão para reduzir a nossa fome, não tem nada a ver com gestos muito badalados, aos quais se põe a máscara da solidariedade e da caridade, no pior sentido incluído no uso desta palavra.
Quando penso que nem o tempo – minutos, dias, meses ou anos – , nem a saúde, nem a doença, nem a ciência, o jeito, a habilidade, são meus, mas nossos, quando penso nisto, vejo melhor o que tenho para fazer com que todos sejamos um pouco mais felizes.
Porque Deus quis precisar de mim é que, entre outras coisas, Jesus me ensinou a pedir “o pão nosso” e não o meu pão.