DEPOIS DO ESPANTO O ESPANTO

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Não é claro, nem seguro, que esteja correcta a tradução que apresento dos termos usados pelos diferentes evangelistas, ao referir a reacção psicológica de Pedro e os companheiros, perante o que experimentaram naquela ida ao cimo do “monte”, subindo e descendo, como frisava há dez anos, o Papa Francisco.

Apetece-me imitar o Papa, no seu aproveitamento da polissemia das palavras para, e, ainda que respeitando integralmente o conteúdo original do texto, utilizá-lo numa análise teológica e mística que permita penetrar na globalidade do mistério da Redenção.

Porque, em meu entender, em toda a Sagrada Escritura, é disso que se trata, não tanto de compreender este ou aquele pormenor, cuja importância lhe advém precisamente do papel que desempenha na pedagogia divina da Revelação.

O substantivo “espanto”, no português actual, em si mesmo polissémico, guarda, apesar de tudo, muitos vestígios da sua origem etimológica, relacionada por estudiosos competentes com o latim “expavere”, que se pode traduzir por “causar medo”, “provocar admiração”.

É o sentimento geralmente atribuído, nos textos bíblicos, às pessoas quando se dão conta da existência de sinais de uma presença especial de Deus; o que sugere sempre uma alteração significativa na sua vida. e essa reacção pode ir da simples curiosidade – querer saber o que se passa, como Moisés diante da sarça ardente, em Ex 3, 2-5 –, ao medo – como acontece muitas vezes com alguns profetas e outros chamados do AT -, – passando pelo temor reverencial, que nasce habitualmente da fé na grandeza de Deus, que não se teme, mas se interroga, como terá sido o caso de Maria (Ver Lc 1, 29-30).

“Ao ouvir estas palavras, ela perturbou-se e inquiria de si própria o que significava tal saudação. Disse-lhe o anjo: «Maria, não temas, pois achaste graça diante de Deus” (Lc 1, 29-30).

Precisamente a respeito de Maria e José, fala o Evangelho, através do relato que nos faz Lucas de duas idas ao Templo que nem sempre separamos devidamente, e, o que é pior, confundindo frequentemente as alusões bíblicas do próprio evangelista. Trata-se do trecho do capítulo II, 21-52, onde há cinco referências claras, que podemos considerar fruto da contemplação do hagiógrafo, à reacção interior dos pais de Jesus; os pais, porque só no fim, São Lucas, como quem cita a sua fonte directa, fala exclusivamente da mãe; cinco referências ao que, naqueles momentos sentiram os pais de Jesus.

Aceitando que outros discordem da minha análise, dado que as traduções nem sempre procuram a diferença entre os momentos, tal como é sugerida, permito-me ordenar as reacções dos personagens, numa gradação em que a fé vai crescendo, da admiração perante o inesperado, à suspensão do julgamento, passando pelo assombro doloroso de um encontro em que o tormento da busca, desemboca no quadro da realização da profecia de Simeão.

No final, o único quadro de conforto para o crente que não se espanta senão com a espantosa presença de Deus na sua vida:

“Sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração” (Lc 2, 51).

É assim que interpreto aquela conversa dos discípulos, ao descerem do mundo, marcados por uma experiência que, segundo todo o contexto narrativo, incluía a Paixão, a Lei, a Morte e a Glória do Mestre.

É também assim que me parece correcto sintetizar a caminhada de todo o crente, como crente, ao longo de toda a sua existência, se dela, apesar das tentações que os acontecimentos fazem nascer o seu espírito, nunca exclui dela a presença de Deus.

Deus, que não cessa de nos surpreender, ouve-se muitas vezes, e é verdade.

Só tenho algumas dúvidas sobre o que geralmente se quer dizer, quando se repete esta afirmação.

Por mim, penso que devemos, antes de mais, tomá-la como um aviso que nos vem de toda a história da Revelação, sempre enquadrada na história da humanidade; de tal modo que é precisamente através do surpreendente que a fé descobre o verdadeiro sentido da palavra de Deus.

E não o descobre sem imitar o gesto de Maria a que São Lucas faz referência por três vezes, em situações que, mesmo quando gozosas, estão recheadas de elementos obscuros, quiçá absurdos, se lhes procuramos uma explicação puramente lógica, racional.

A terminar, apetece-me dizer que a nossa vida de fé tem de estar marcada pelo espanto; mas um espanto que, em qualquer caso, tem de nos lançar com um sentimento de confiança muito grande em Deus: por isso Jesus nos diz que temos de ser como as crianças; certamente para aprendermos a espantar-nos como elas.

É também seguro que não aprende a perdoar quem não sabe espantar-se com os próprios pecados; num espanto que nos lança, humilhados e arrependidos, no oceano imenso da Misericórdia divina.

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