Copio, com a devida reverência, de uma relativamente recente edição portuguesa do livro de Job:
“A justiça e a acção de Deus não se podem medir com as regras de equivalência que são normais em justiça distributiva.
Eis um dos mais marcantes contributos do livro de JOB para esta importante questão do humanismo e da experiência religiosa. A sua atitude básica perante o sofrimento não é de moral legalista, nem é pietista, nem expiacionista. É uma atitude de corajoso acolhimento do real; é contemplativa e verificadora; é um caminho de sabedoria. É, por conseguinte, um espaço de transformação de si mesmo e dos factos.
É ainda acolhimento do Deus invisível nas experiências humanas de paraíso e de deserto” (Nova Bíblia dos Capuchinhos).
Apesar de, neste momento, me posicionar numa perspectiva, não sei se mais vasta se menos alargada que a do autor destas palavras, confesso que não posso deixar de aceitar plenamente a visão do sofrimento humano que ele diz encontrar no livro de Job.
Friso de modo especial, que a atitude básica de Job “perante o sofrimento não é de moral legalista, nem é pietista, nem expiacionista”.
Não é, de modo nenhum, a visão que encontramos hoje, até em textos ou comentários destinados à formação ascética do povo cristão.
Job aparece habitualmente no imaginário popular quase como um vestígio de humanidade, resignado no seu canto, aceitando com protestos sumidos, o abandono provocado pelas desgraças, que vão da perda dos bens à perda da saúde, depois de perder a própria família; restando-lhe apenas alguns amigos que, em vez de o confortarem, agravam o seu tormento interior, com observações inoportunas.
O que infelizmente levou até a uma visão errada do que é verdadeiramente a paciência como virtude cristã; visão que não corresponde sequer ao mais recente magistério da Igreja: ver, por exemplo, a encíclica de São João Paulo II, “Salvifici doloris”, de 11 Fevereiro de 1984.
A atitude de Job perante o sofrimento, ao contrário, segundo diz, muito correctamente, o nosso autor, é “uma atitude de corajoso acolhimento do real; é contemplativa e verificadora; é um caminho de sabedoria”.
“Caminho de sabedoria”, que consiste fundamentalmente, no “acolhimento do Deus invisível nas experiências humanas de paraíso e de deserto”.
O “Deus invisível nas experiências humanas de paraíso e de deserto”, será o que Se esconde nas alegrias e nas tristezas, através das quais passam o “sábio” e o que não o é, consoante seguem ou não o caminho percorrido por Job; resultando disso que tanto as alegrias como as tristezas, se nelas acolhemos Deus, se tornam divinas.
A paciência de Job, segundo a revelação bíblica, está, portanto, mais próxima do homem redimido, ou a caminho da redenção, que o Evangelho descobre em Jesus Cristo, não já como a criatura a caminho do Criador, mas este a caminho daquela.
A paciência de Job, será, para a Igreja e cada um de nós, como seus membros, não já a paciência de uma figura do Antigo Testamento, mas a daquele do qual, no próprio dia da inauguração do seu pontificado (24.04.2005), disse o Papa Bento XVI:
«O Deus que se tornou um cordeiro diz-nos que o mundo é salvo pelo Crucificado e não pelos crucificadores. O mundo é redimido pela paciência de Deus e destruído pela impaciência dos homens».
A impaciência dos homens será a que Jesus não quer nos seus discípulos, como vemos no episódio de hoje, segundo a versão de São Lucas (9, 51-56):
“Aproximando-se os dias de Jesus ser levado deste mundo, Ele tomou a decisão de Se dirigir a Jerusalém e mandou mensageiros à sua frente. Estes puseram-se a caminho e entraram numa povoação de samaritanos, a fim de Lhe prepararem hospedagem. Mas aquela gente não O quis receber, porque ia a caminho de Jerusalém. Vendo isto, os discípulos Tiago e João disseram a Jesus: «Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu que os destrua?». Mas Jesus voltou-Se e repreendeu-os. E seguiram para outra povoação”.
Perante tal impaciência, Jesus voltou-Se e repreendeu os dois irmãos, classificando-os mesmo de filhos do trovão, segundo a versão de São Marcos (3, 17 sgs).
“Filhos do trovão” não servem para discípulos de Jesus, a não ser que se disponham àquela paciência que, como a de Jesus, que, quando querem dificultar a sua marcha para a cidade onde passarão dias de ser levado deste mundo – na consumação da sua entrega à realização da vontade do Pai – não desiste da marcha; tem a coragem de, vencendo a revolta que, em Tiago e João nasce da tradicional rivalidade entre judeus e samaritanos, continuar pacientemente em busca de alternativa: porque, isso descobre sempre a verdadeira paciência, para não ferir seja quem for, vai, se for preciso, até à morte: é assim que, na Cruz, Deus morre para não matar.
“E seguiram para outra povoação”.
Paciência, para o discípulo, é sinónimo de coragem: coragem para enfrentar a realidade, que se aprecia na totalidade das suas dimensões, como espaço de encontro com esse Deus que, em Jesus Cristo, como escreveu o autor do quarto evangelho, “tendo amado os seus que estavam no mundo, levou o seu amor por eles até ao extremo” (Jo 13, 1e sgs).