Caiu um avião, numa zona particularmente populosa, daquele subcontinente, durante séculos cobiçado e explorado, e que, bem vistas as coisas, apesar de todos os meandros que encerra, só conseguiu salvar a sua identidade, pelo sentimento religioso, de várias raízes, mas sempre projectado no transcendente.
E, nas informações de certas agências noticiosas, não será muito difícil descortinar uma crítica velada a esse sentimento, como responsável indirecto de tão grande número de mortos, na simples queda de um avião.
Será como responsabilizar quem defende a vida a todo o custo, pelo número de vítimas de tantas explosões letais, provocadas ou não.
Menos mal, que desde o galileu Tomé, segundo narra a tradição desses povos, à jovem franzina da Albânia, conhecida por Teresa de Calcutá, muitas centenas de homens e mulheres, eu diria centenas de milhares, andaram por ali, quase sempre perseguidos até à morte, mas abrindo aos mais infelizes e abandonados, luzeiros de esperança, para que não se deixassem abater pelo massacre de tantas explorações.
Tentando abrir o janelão por onde vislumbre o que Deus me quer dizer com mais esta tragédia, o primeiro lampejo mostra-me o desprendimento e a solidariedade de tantos corações que, sem interesses ideológicos, procuram por todos os meios salvar o que ainda pode ser salvo, de uma humanidade sempre ameaçada, não tanto pelos seus limites, como pela loucura de os ignorar.
Não que o progresso em si ou a ciência, como tal, sejam maus; mas um crente não pode nuca esquecer um princípio que já os antigos sábios do oriente, bíblico e não bíblico, transmitiram ao ocidente; de tal modo que hoje, será difícil encontrar uma língua que não exprima essa ideia com provérbios de vária ordem: “em todas as coisas repara sempre na sua finalidade”.
Os pensadores medievais, certamente guiados pelo conteúdo com que o cristianismo sublimara esse princípio, sintetizaram o provérbio com três termos muito curtos: “in omnibus respice finem”, que podemos traduzir assim: em tudo, olha para o fim.
E o “fim”, na mente dos grandes pensadores cristãos, filósofos e teólogos, é talvez menos abrangente que o da tradição greco romana; menos abrangente, mas muito mais sério e profundo: porque se refere à verdade intrínseca do que se pensa, diz ou faz; e isso depende em absoluto do autor de todo o ser, que é Deus.
Não vou falar outra vez da barbaridade da guerra, ainda que a ameaça de mais um universal conflito armado seja tão premente, que, se não fosse o desmentido da história – exactamente da mais recente -, diríamos que se voltou ao princípio romano: “Se queres a paz, prepara a guerra”; como se fosse verdade que o medo bastasse para evitar esse cataclismo.
Não, não quero falar outra vez dessa tremenda imagem do Inferno: tão forte, tão viva e eficaz, que, como dizia o nosso Padre António Vieira, há quase quinhentos anos, com ela, nem Deus está seguro nos seus templos.
O espectáculo aterrador da multidão de mortes causada pela simples queda de um avião, traz-me à mente todo o mal que tem trazido ao mundo a recusa do homem a aceitar os limites cuja ultrapassagem não consegue senão ilusoriamente e, mesmo assim, esmagando o seu semelhante.
É um contexto em que até as catástrofes ditas naturais nos vêm recheadas de marcas desse orgulho do homem, que quer tornar-se o único critério de verdade.
Apesar do isolamento a que me votei, ressoam ainda aos meus ouvidos tantos dos vivas à liberdade, que percorreram as nossas ruas, coloridos com o sangue do ódio e da violência: afinal, Jesus prometeu, e consegue quem escuta: «Se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres» (Jo 8, 31-32).
Sem verdade, tudo está ao serviço do mal que, no dizer do poeta dramaturgo R. Schneider, “vive sob milhares de formas; ocupa os vértices do poder (…); brota do abismo. O amor tem uma única forma: é o teu Filho”.
Não se trata de ver o pecado em tudo e em todos: para mim trata-se, antes de ver a virtude autêntica, onde está a verdade das coisas, porque sem ela, tudo é mentira e da mentira não nasce senão a escravatura e a ruína.
Para terminar, com o perdão de todos, deixo aqui mais uma citação, tirada do pouco que nos resta de um dos maiores mestres da exegese bíblica dos primeiros séculos:
“Frequentemente se verifica que Jericó é utilizada nas Escrituras como imagem do mundo. Também no Evangelho, o que se conta acerca do homem que descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos ladrões, era sem dúvida a imagem daquele Adão que foi posto fora do paraíso e colocado no exílio deste mundo. Também os cegos que estavam em Jericó, dos quais Jesus se aproximou para lhes dar a vista, representavam a imagem daqueles que neste mundo eram oprimidos pela cegueira da ignorância e que o Filho de Deus veio socorrer” (Orígenes).