“Vou cantar em nome do meu amigo o cântico do seu amor pela sua vinha:
Sobre uma fértil colina, o meu amigo possuía uma vinha.
Cavou-a, tirou-lhe as pedras, e plantou-a de bacelo escolhido.
Edificou-lhe uma torre de vigia, e nela construiu um lagar.
Depois esperou que lhe desse boas uvas, mas ela só produziu agraços” (Is 5, 1-2).
Qualquer pessoa que leia, mesmo que com pouca frequência, a Sagrada Escritura, tanto no Novo como no Antigo Testamento, se dará conta da profusão de imagens inspiradas no vinho e na viticultura de que se servem os hagiógrafos, para transmitir a vastidão e profundidade dos mistérios que são encarregados de transmitir à humanidade.
É claro que isso mostra que se trata de elementos da natureza, por uma extrema variedade de factos, ligados à vida quotidiana das pessoas na geografia da região: talvez daquilo em que a simbiose entre a natureza e o homem se torna mais evidente.
Não admira, por isso, que o vinho e o pão apareçam, já no Antigo Testamento, figurando aquilo em que deviam tornar-se integrando o núcleo central da existência cristã: a Eucaristia, com toda a amplitude da fé e da teologia da Igreja.
Ponto culminante desta identificação, temo-lo em João 2, 1-11, onde Jesus Cristo é o vinho bom, que vem salvar a festa, o banquete nupcial de Deus com a Criação.
Mas, de todos os textos bíblicos que nos falam da vinha, não tanto do vinho, os mais conhecidos são as duas parábolas, uma belíssima, na forma e no conteúdo, do Antigo Testamento (Is 5, 1-7); outra, cuja poesia se some talvez um pouco pela sistematização do conteúdo, no Novo Testamento (Mt 21, 13-46; e paralelos: Mc 12,1-12; Lc 20,9-19).
Comparando o profeta com Jesus, a diferença fundamental é que Isaías fala de infidelidade da vinha, que, apesar de todos os cuidados, em vez de dar uvas, apenas produziu agraços.
No Evangelho há uma alteração profunda: contrariamente ao que se poderia pensar numa leitura demasiado apressada: vai-se muito para além da questão epocal, ou seja a oposição das autoridades religiosas de Jerusalém, ainda que, mais uma vez, essas autoridades e os que como elas não ultrapassam o tempo e o espaço em que escutam a mensagem divina, fiquem sem perceber a profundidade do seu conteúdo.
De facto, se não me engano quanto ao contexto, inclusivamente dos discursos sobre a vigilância, a vinha da parábola de Jesus já não é apenas, nem principalmente, figura de um povo concreto, com fronteiras terrestres e uma capital que se orgulha do seu nome e da sua história:
Por isso, enquanto Isaías censura a vinha que, em vez de uvas produziu agraços, Jesus fala da infidelidade dos vinhateiros, que se apoderam da vinha, perseguem, roubam e matam quem procura defender os direitos do proprietário, ministros como eles, destinados a proteger a vinha e a fazer com que dê, a seu tempo, os frutos devidos.
E, como se afigura na história de José, de que se recolhe, na primeira leitura, o começo de uma entrega à missão do pai, aceitando o ciúme, a inveja, o ódio e a perseguição dos irmãos, primeiro, dos inimigos, depois, como José, confiar que os insondáveis desígnios de Deus, sempre passam através dos erros e pecados dos homens, com aqueles que lhes resistem por fidelidade à sua missão.
Diz, a certa altura, o texto sagrado:
“Passando por ali uns negociantes de Madiã, tiraram José da cisterna e venderam-no por vinte moedas de prata aos ismaelitas, que o levaram para o Egipto” (Gen 37, 28).
Hoje, mirando as coisas a olho nu, sentimo-nos num mundo mais corrompido e cruel: as cisternas estão repletas de lodo e vende-se tudo por menos de vinte moedas de prata.
Também é verdade que se vende porque há quem compre; outros dirão, ao contrário, que se compra porque há quem venda.
De facto, uma coisa não existe sem a outra, porque ambas se desenvolvem mutuamente, a partir das mesmas raízes, que se alimentam daquele engano das origens, quando o homem se colou ao sonhou de poder conquistar a felicidade, rejeitando a sua única fonte, que é Deus.
Mas não podemos mirar o mundo a olho nu, repetindo o erro dos fariseus e doutores da Lei, que, por não terem entendido o essencial da parábola, se limitaram a aplicar aos maus vinhateiros o rigor da lei, mantendo-se assim no plano puramente horizontal; e quando Jesus lhes diz que, desse modo, não tem para eles senão o castigo que conhecem da letra da lei, decidem eliminar quem se atreve a denunciar a sua responsabilidade de maus vinhateiros.
Para um leitor crente do nosso século, a parábola dos maus vinhateiros, com a respectiva punição, como, aliás, todas as parábolas que incitam à vigilância, contém um aviso solene do Senhor, porque todos somos, pelo Baptismo, cepas e guardiões cultivadores desta vinha, que não tem fronteiras, nem territoriais, nem culturais.
O Senhor não fala da vinha, porque esta acaba por ser o Reino, em última análise, será Ele próprio, confiando-se à fidelidade dos vinhateiros.