D. António Marto escreve aos padres: Viver a fé num tempo difícil de confinamento

O novo confinamento decretado pelo governo exprime a gravíssima situação à qual quer fazer face e apela à responsabilidade de todos e cada um: cidadãos, famílias, escolas, empresas, confissões religiosas.

(Nota do editor: esta mensagem foi divulgada antes do comunicado emitido pela Conferência Episcopal Portuguesa que indica a suspensão das celebrações “públicas” da Eucaristia. A diocese de Leiria-Fátima segue as instruções da CEP que devem ser consideradas no teor da presente mensagem)

Viver a fé num tempo difícil de confinamento

Numa espécie de corrida imparável, o vírus da covid-19 regressou em força, numa nova variante e a uma velocidade de contágio assustadora. De repente disseminou a preocupação, o medo e o pânico, sobrecarregou os serviços de saúde quase até à rutura, ceifou elevado número de vidas. As palavras de ordem voltam a ser “Ficar em casa”, “Só juntos venceremos”.

O novo confinamento decretado pelo governo exprime a gravíssima situação à qual quer fazer face e apela à responsabilidade de todos e cada um: cidadãos, famílias, escolas, empresas, confissões religiosas. Requer, pois, da nossa parte um reajustamento da vida pastoral das nossas comunidades às novas condições, restrições e demais exigências. Para esse efeito, o Conselho Permanente da CEP emitiu um comunicado com as orientações a seguir nas dioceses do país. Quero realçar alguns aspetos a ter em consideração.

Continuar a alimentar a fé

Após a experiência do primeiro confinamento, já não somos apanhados totalmente desprevenidos e impreparados. Continuaremos a alimentar e a promover a vitalidade da fé e da vida cristã nas condições possíveis e com criatividade dos novos modos e meios. É necessário manter vivos os laços comunitários, a proximidade e a comunhão fraterna e solidária. Devemos estar atentos para não deixar que se perca a consciência de pertença à comunidade cristã, à Igreja. Ao mesmo tempo observaremos com rigor as exigências sanitárias como temos feito de modo exemplar, mostrando sentido de responsabilidade individual e comunitária. Nunca é demais insistir nesta pedagogia.

A atividade pastoral vai realizar-se num clima de perplexidade, incerteza e instabilidade, com muitas incógnitas sobre os seus efeitos, deixando porventura efeitos nefastos e feridas atrás de si. Mas não podemos perder o ânimo, nem cair na resignação ou no desleixo. Como escreveu alguém: “A arte de viver consiste em restaurar as fontes do entusiasmo”. No meio desta perturbação há que trabalhar com paciência, discernimento e esperança, conscientes de que Deus está connosco na obra que nos confiou, e dando a mão uns aos outros.

Donde pode a Igreja receber o que lhe dá ânimo e fortaleza? Naturalmente, da celebração comunitária da fé, da oração, da escuta da Palavra de Deus, dos sacramentos da graça, da comunhão e do serviço fraternos. Estes dons devem estar acessíveis ao povo de Deus na medida das atuais circunstâncias e com o recurso possível a diversos meios adequados. Não deixemos o nosso povo no vazio espiritual, carente de alimento.

A Eucaristia dominical

Todos podemos testemunhar que “a oração comunitária dominical não tem sido nociva para o agravamento da doença. Pelo contrário, o seu exercício é decisivo para o robustecimento espiritual contra a ameaça da doença” (J. Cunha). De facto, é um momento em que se faz a experiência de ser Igreja, comunidade reunida à volta do Senhor que a convoca tornando-se presente como Pão de Vida; em que se faz também a experiência de rostos e nomes que se conhecem, encontram, falam e partilham e que tomam consciência de serem chamados do mundo real com os seus problemas para depois serem de novo enviados a levar ao mundo uma novidade que o mundo não pode dar: o calor e a fortaleza da comunhão com Cristo e os irmãos. Cuidemos das celebrações para que sejam um momento forte de fé, amor e esperança neste momento difícil. É uma verdadeira medicina de robustecimento espiritual!

A catequese

Quanto à catequese, o respetivo Serviço Diocesano enviou, recentemente, orientações práticas. Agora quero apenas realçar a recomendação de “apostar sempre num acompanhamento próximo das crianças e adolescentes e suas famílias”, qualquer que seja a forma em que se realiza: presencial, ou online ou mesmo quando é suspensa. Procurar a relação com as famílias é muito importante; cuidem dela com particular atenção. 

A atenção às famílias

A Pastoral familiar tem novamente uma oportunidade para ajudar a despertar e a tomar consciência do ser Igreja doméstica, com propostas da necessária espiritualidade familiar, de oração, reunião, leitura e meditação da Palavra de Deus, e lectio divina que é oferecida pelos canais digitais. Abrem-se oportunidades de evangelização e formação online, e de crescimento espiritual, e cabe-nos a nós levá-las ao povo que nos foi confiado.

Os mais frágeis

Particular atenção deve ser dedicada aos idosos e aos que sofrem a solidão, procurando modos de manifestar a nossa proximidade, de acompanhar, animar, consolar, rezar com eles e por eles, em atitude de comunhão espiritual. Não deixemos que alguém se sinta só, sofra a solidão e o isolamento.

Também os pobres e os necessitados dos bens essenciais merecem igual atenção de modo que encontrem nas comunidades os samaritanos que se inclinam sobre o homem abandonado na berma do caminho da vida e dispostas à partilha e solidariedade, sobretudo reativando os grupos sociocaritativos.

Os actos fúnebres

Os funerais e os familiares em luto merecem um cuidado especial. Nesta dramática situação, todos nos damos conta de que os funerais revestem particular importância quer pela solidão em que muitos morrem, quer pela dor emocional dos familiares cujo luto ficou porventura suspenso, se não tiveram ocasião de despedir-se dos seus entes queridos. É preciso saber estar com quem sofre e não permanecer indiferente à dor ou agravá-la.

As celebrações podem ter restrições, mas devem distinguir-se por uma sensibilidade humana, social e religiosa muito respeitadora e delicada. O sentido religioso é oferecer um espaço ritual ao luto e à consolação da fé às pessoas envolvidas. É bom que os familiares se sintam apoiados pela comunidade que se une a eles e reza pelo parente falecido e por eles. A celebração é um momento de guardar e reconhecer a dignidade última de cada vida humana. Por toda a densidade que encerra, deve ser celebrada com toda a dignidade da presença, dos gestos, das palavras e dos sinais mais adequados, anunciadores da esperança na ressurreição e na vida eterna. Os fiéis, em especial os familiares, esperam dos sacerdotes que não façam os ritos fúnebres a despachar, de modo frio, sobretudo quando só se realizam no cemitério. Pede-se aos sacerdotes que, nessa ocasião, se apresentem com os sinais próprios de ministros do Senhor e da Igreja, que, de algum modo, visibilizam o aspeto sagrado e transcendente desse momento.

O plano pastoral

Recordo que temos um programa pastoral para este ano que não pode ser esquecido. Procuremos realizá-lo na medida do possível, com os necessários reajustamentos e adaptações. Aproveitemos os subsídios já disponíveis relativos à leitura orante da Palavra e à formação para os ministérios litúrgicos e os guiões de adoração eucarística.

Na pandemia, os pastores recuperaram o valor de “estar com” os frágeis e feridos, mesmo em comunhão espiritual, o confiar-se à graça de Deus em vez de estarem dependentes do ativismo, do “fazer”, preenchendo o tempo de atividades. A covid-19 obriga-nos a aceitar as limitações da atividade pastoral para confiar no poder da graça que atua nos meandros misteriosos da vida e dos acontecimentos humanos.

A regeneração

O confinamento permite, pois, a muitos pastores repousar, regenerar-se, refazer energias, reordenar as próprias coisas. Oferece a oportunidade para atualizar leituras, rezar e meditar com mais calma, permanecer unidos aos que sofrem. Na atual situação, os sacerdotes como ministros da Igreja devem ser anunciadores de esperança levando o amor misericordioso de Deus nos momentos mais duros e escuros da vida.

Estamos ainda no meio da tempestade, com a esperança de que pouco a pouco acalmará. Cada pessoa, cada família, cada comunidade deverá gradualmente cicatrizar as feridas, recuperar a proximidade, recompor o tecido comunitário, saudar a libertação do flagelo e a liberdade, reavivar a alegria do evangelho. 

O nosso voto é de que tudo o que aconteceu e está a acontecer inspire cada um, em particular os sacerdotes, a ser testemunha de sabedoria e espiritualidade, promotor de um novo espírito de fraternidade, semeador de esperança no mundo que há de vir.

A unidade dos cristãos

Estamos a celebrar a semana de oração pela unidade dos cristãos com o tema “Permanecei no meu amor e produzireis muitos frutos” (cf. Jo 15, 5-9). O tema reflete a vocação à oração, à reconciliação e à unidade da Igreja e de toda a família humana. E realça que é a partir do permanecer em Cristo, fonte de todo o amor, que brotam e crescem os frutos da comunhão, da solidariedade e do testemunho, da santidade na Igreja e no mundo. O tema é apelativo para envolver as nossas comunidades neste movimento de oração e também para nos ajudar a viver o ministério, neste tempo de confinamento, com a riqueza de espiritualidade que encerra: “Permanecei no meu amor e produzireis muitos frutos”. 

Peço a todos que, por intercessão de Nossa Senhora, Mãe de misericórdia e Saúde dos enfermos, peçamos ao Senhor Deus que nos ajude a libertar deste flagelo da pandemia.  Na oração diária rezemos pelos doentes com covid, pelos profissionais de saúde, pelos defuntos e seus familiares em luto. A todos tenho presentes na minha oração e manifesto a minha proximidade e solidariedade fraternas.

Leiria, 19 de janeiro de 2021.

† Cardeal António Marto, Bispo de Leiria-Fátima

Refª: CE2021B-001

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