Entre a utopia de Isaías e as exortações de Paulo, o clarão luminoso da narrativa de Mateus.
Comparado com o que do mesmo mundo consegue abraçar hoje o nosso olhar, apesar das lutas com que Roma continuava a alargar as fronteiras do seu império, esse era um mundo vivo, mas pacífico, com as redes do comércio e da cultura cruzando-se, enfrentando-se, por vezes, mas sempre com um enorme enriquecimento mútuo.
Numa pequena cidade da Galileia, como acontecia por toda a parte no Império, um funcionário real, talvez comandante de uma guarnição de cem homens, mantinha viva a imagem da autoridade suprema, que, além do mais, vigiava também o comportamento dos seus funcionários.
Em Cafarnaum., cidade do lago, favorecida pela generosidade das águas do lago e a sua proximidade de regiões menos ricas, este funcionário cumpria de tal modo o seu dever profissional, que ara tão estimado pelos cidadão como dos detentores do poder que representava.
Prova da sua grandeza de coração está o modo como reage perante a doença de um dos seus subalternos e do modo como procura resolver a situação: com diligência e humildade, não reclamando nada à base do sua posição como funcionário do poder central, não se considera sequer digno de ser visitado por esse Jesus, para chegar ao qual tivera já a humildade de pedir a ajuda dos seus súbditos.
“Senhor, eu não sou digno de que entreis debaixo do meu tecto; mas dizei uma só palavra e o meu servo será curado” (Mt 5)
Qualidades humanas que não reduzem a capacidade profissional daquele homem, muito pelo contrário, a tornam mais eficaz, no relacionamento com os outros, e, antes de escancararem as portas para a fé; qualidades terão comovido o coração de Cristo, o Verbo de Deus, que veio para salvar tudo o que estava perdido.
Perdido está o mundo – o tempo, as coisas e as pessoas – desde aquele momento inicial em que, desconfiando da sua própria origem divina, o homem quis estar acima do próprio Deus: e, para cúmulo da tragédia, ao dar-se conta do mal causado por um tal absurdo, em vez de assumir a sua responsabilidade, começa por culpar o próprio Deus, caminhando de erro em erro, na tentativa sacrílega de fazer um mundo à medida da sua loucura.
Superior a esta loucura, só a de Deus, que não desiste de, com o homem convertido, reconduzir a Criação à sua dignidade primitiva; mas que esta recondução, acontecendo a partir do interior de cada um, deixou de ser visível ao olhar ofuscado pelo sonho que traiu Adão e os que não aceitam a descendência que esmagou a cabeça da serpente (Cfr Gen 3, 15).
Misteriosamente, o profeta que anuncia a restauração de Israel, proclama:
“Por cima de tudo, a glória do Senhor será uma cobertura e uma tenda, para fazer sombra contra o calor do dia e servir de refúgio e abrigo contra a chuva e a tempestade” (Is 4, 5-6).
A chuva e as tempestades ameaçam a Cidade Santa reconstruída e libertada? Como assim? Como pode isso acontecer?
Não é essa cidade figura do reino messiânico, do novo povo de Deus, da Igreja?
Deixemos os exegetas tranquilos no seu trabalho, sempre útil, quando respeita os limites da sã teologia e da fé.
Ora a fé da Igreja de Cristo é fé num Deus que se faz homem – os Padres chamaram-Lhe “novo Adão” – para que n’Ele e com Ele, a humanidade possa a cada momento, ultrapassar as barreiras erguidas pelo orgulho, a ambição, o medo e a morte.
E não podemos perder o rumo, pensando em soluções que excluam o Calvário, sem o qual também o sepulcro vazio não tem qualquer significado.
São Paulo, numa das mais emotivas das suas cartas, escrita da prisão aos cristãos de Filipos, que haviam tido o carinho de lhe enviar algum conforto de ordem material, diz, entre outras coisas:
“Só isto é necessário: comportai-vos em comunidade de um modo digno do Evangelho de Cristo, para que – quer eu vá ter convosco, quer esteja ausente – ouça dizer isto de vós: que permaneceis firmes num só espírito, lutando juntos, numa só alma, pela fé no Evangelho e não vos deixando intimidar em nada pelos adversários; o que para eles é sinal de perdição, porém, é sinal da vossa salvação; e isto vem de Deus.
Porque, a vós foi dada a graça de assim actuardes por Cristo: não só a de nele acreditar, mas também a de sofrer por Ele, assumindo o mesmo combate que vistes em mim e de que agora ouvis falar a respeito de mim” (Fil 1, 27-30).
E um pouco mais adiante:
“Tende entre vós os mesmos sentimentos, que estão em Cristo Jesus:
Ele, que é de condição divina, não considerou como uma usurpação ser igual a Deus; no entanto, esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de servo. Tornando-se semelhante aos homens e sendo, ao manifestar-se, identificado como homem, rebaixou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz” (Id 2, 5-8).
Disto não há que fugir: só se salva quem vive da fé; e a fé é adesão a uma Pessoa divina que ao morrer para não matar, assume todas as mortes que implica na vida de cada um, a ultrapassagem do que se opõe à verdade da Criação e à honra de Deus.