“O Espírito aspira ao que dá vida e paz”, escreveu S. Paulo à Igreja em Roma (Rm 8, 6). Essa expressão inspirou o nome para esta comunidade, nascida em 1989, em Lisboa. À luz da Doutrina Social da Igreja e encarnando os princípios da dignidade da pessoa, do bem-comum e da subsidiariedade, a Comunidade Vida e Paz (CVP) assume como missão “ir ao encontro e acolher pessoas sem-abrigo ou em situação de vulnerabilidade social, ajudando-as a recuperar a sua dignidade e a (re)construir o seu projeto de vida, através de uma ação integrada de prevenção, reabilitação e reinserção”.
Dar alimentos, agasalhos…
e a (re)construção da vida
Tudo partiu da interpelação que a realidade humana e social da cidade de Lisboa despertou num grupo de católicos provenientes do Renovamento Carismático. Sob a coordenação da irmã Maria Gonçalves, das Servas de Nossa Senhora de Fátima, decidiram ir ao encontro dos mais pobres e desprotegidos, os sem-abrigo, procurando ser junto deles uma presença transformadora. Atualmente, são mais de 600 os voluntários que todas as noites percorrem a cidade em quatro carrinhas brancas. Levam alimentos e agasalhos, mas também tempo para escutar e motivar a uma mudança de vida outras tantas pessoas em situação de ruptura familiar e social.
Ereta canonicamente pelo patriarca D. António Ribeiro, a 17 de Abril de 1989, a Comunidade é hoje uma Instituição Particular de Solidariedade Social com personalidade jurídica, sem fins lucrativos e reconhecida como Pessoa Coletiva de Utilidade Pública. Neste ano em que comemora o 25.º aniversário, em junho passado, foi condecorada pelo Presidente da República com o título de membro honorário da Ordem da Liberdade, “pelos serviços relevantes prestados em defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e à causa da liberdade”.
Pela recuperação da vida
Muito mais do que a simples assistência às necessidades primárias dos sem-abrigo, a CVP desenvolveu um projeto global integrado de reabilitação psicossocial, com vista à sua plena reinserção na sociedade.
O primeiro passo é escutá-los. Depois, propor-lhes a reconstrução ou, em muitos casos, a primeira verdadeira construção de uma vida com sentido. Os que aceitam a proposta são encaminhados para o Espaço Aberto ao Diálogo, em Lisboa, onde uma equipa técnica os acolhe e motiva. Daí poderão seguir para uma das duas Comunidades Terapêuticas, com um total de 135 vagas, uma no Centro de Moimento de Fátima e outra no Centro da Quinta da Tomada.
O programa terapêutico dura cerca de 12 meses e incide nas vertentes física, psíquica e espiritual, complementado por formação técnico-profissional. Trata-se, sobretudo, de um tratamento de dependências do álcool ou outras drogas, mas também de desenvolvimento de uma nova atitude perante a vida e de aquisição de competências que aumentem a possibilidade de encontrar um emprego e de ter uma reinserção social eficaz. Nessa linha, a vertente espiritual é fundamental, alimentada por um programa pastoral adequado à realidade destas pessoas.
Este trabalho adquiriu uma dimensão enorme, que motivou uma diversidade de valências para além dos centros terapêuticos, como sejam: duas Comunidades de Inserção para 88 utentes (Centro da Quinta do Espírito Santo e Centro da Quinta da Tomada), dois Apartamentos de Reinserção para 15 utentes e outros dois apartamentos partilhados para oito utentes; uma Unidade de Vida Autónoma para sete utentes; uma empresa de inserção social (COVIPAZ) para colocação laboral e apoio ao emprego; e o acompanhamento pós-alta para apoio aos ex-utentes que se autonomizaram.
Além disso, a Comunidade dá apoio a cerca de duas dezenas de famílias carenciadas, ajudando-as na sua reestruturação e necessidades básicas, e dinamiza o “Projeto Escolas – Educar para os Valores”, que visa sensibilizar alunos e professores para as questões da exclusão social, pobreza, dependências, voluntariado, etc.
Uma das ações com maior visibilidade é a Festa de Natal de três dias com os sem-abrigo, que organiza desde a sua fundação, na cantina da Cidade Universitária, em Lisboa. Nela colaboram cerca de 1.300 voluntários e são acolhidas anualmente mais de 3 mil pessoas.
Entrevista a Renata Alves, diretora do Centro de Moimento da CVP
“Fazer parte da Comunidade é para mim um grande motivo de orgulho e de gratidão”
Renata Alves, psicóloga clínica de 38 anos, é natural da paróquia da Marinha Grande e reside na paróquia das Cortes. Há 14 anos, descobriu a Comunidade Vida e Paz (CVP) e, desde há 8 anos, é diretora deste Centro Terapêutico, em Fátima.
A vinda da CVP para a diocese de Leiria-Fátima, nomeadamente, com a instalação deste centro, teve alguma razão especial?
Foi, acima de tudo, por ter sido doado o terreno onde está instalado o Centro de Fátima, mas veio ao encontro do desejo de poder ser em Fátima.
Como está organizado o vosso serviço nesta diocese?
Temos duas valências. O Centro Terapêutico de Moimento, em Fátima, destinado ao tratamento de pessoas com problemáticas de toxicodependência e alcoolismo, tem capacidade para 70 utentes do sexo masculino. Aqui recebemos pessoas sinalizadas pelas equipas de rua da CVP em Lisboa, ou por entidades externas, como hospitais, tribunais, equipas de tratamento, etc. O Apartamento de Reinserção, em Leiria, pode acolher sete utentes que tenham terminado o tratamento e já estejam reinseridos, autónomos e a trabalhar.
Nesse trabalho, há algum tipo de cruzamento com a pastoral diocesana?
Todos os anos, temos um plano pastoral dinamizado por um grupo de colaboradores e voluntários para o apoio espiritual, que contempla atividades que podem ser incluídas na programação da Diocese. Contamos também com a colaboração de dois sacerdotes diocesanos, que celebram a Eucaristia nas nossas instalações uma vez por mês e em datas litúrgicas, prestando ainda apoio espiritual aos utentes. E temos a ajuda de um catequista da paróquia. Por outro lado, alguns dos nossos utentes participam na Eucaristia dominical numa paróquia da Diocese ou noutro tipo de atividades.
Há muitos diocesanos de Leiria-Fátima membros da CVP? Como se processa a integração?
A maioria dos colaboradores do Centro de Fátima pertence à diocese, cerca de 30, bem como alguns voluntários. A integração é feita através de entrevistas para selecionar colaboradores e voluntários.
A nível pessoal, como foi a sua aproximação à CVP e o que significa para si fazer parte desta comunidade?
Aproximei-me da CVP para pedir a realização de um estágio profissional, pois tinha muito interesse em trabalhar na área da recuperação de toxicodependentes. Por saber que são pessoas muito marginalizadas e fragilizadas ao nível emocional, físico e social, sem competências ou recursos para fazer face a decisões ou emoções que vivenciaram, desejava poder ajudá-las a voltar a uma vida saudável, equilibrada e digna.
Aqui, consigo cumprir plenamente essa minha vocação. Por isso, fazer parte da Comunidade é para mim um grande motivo de orgulho e de gratidão. Tenho ao longo destes anos recebido muito, pois tudo o que tenho aprendido e sentido fez e faz com que desenvolva o meu lado técnico, mas sobretudo humano, o que procuro diariamente transmitir aos que me rodeiam.
Livro
Do outro lado da rua: 25 anos, 25 vidas
A propósito dos 25 anos da Comunidade Vida e Paz, a jornalista Marta Atalaya entrevistou 25 pessoas, cujas vidas foram marcadas pelo apoio que receberam desta organização. Sobre esta obra, diz o patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, que “tem em cada página a carne e a alma de gente concretíssima e o local definido das vidas vividas, sofridas e retomadas”.